Tinha mulher e três filhas, meninas ainda, para quem tocava doces melodias em sua gaita de boca, quando um dia, no trânsito, bateu de leve no pára-choque traseiro do carro da frente. Era uma situação simples de ser contornada, mas não foi. O outro motorista, armado, saltou do carro em fúria. Ninguém soube se por acaso, como concluiu o Tribunal do Júri que o inocentou mais tarde, ou se por querer mesmo, a arma foi disparada. Ele caiu na rua, atingido mortalmente na cabeça, bem na frente da família que o aguardava no carro. O pai, que nunca se conformou com a morte cretina do filho, esperou o tempo passar para numa noite sequestrar o assassino, levando-o até um cemitério. Tinha numa mão um revólver e na outra a gaita do filho que jazia na sepultura diante deles. Encolhido no chão, o rapaz implorou pela própria vida. Eu vou te uma chance, seu merda!, disse o velho. O assassino viu uma esperança. Toca a gaita! O quê? Toca a gaita! Eu não sei tocar, porra! Toca a porra dessa gaita! Meu filho, aquele que você matou, adorava o som dessa gaita. Então toca ela! Se ele levantar da cova, eu te deixo ir embora. O outro chorou alto de pavor.
(extraído do livro de contos "As coisas que chamamos de nossas")