sábado, 30 de junho de 2012

A DITADURA DO SORRISO


Admiro quem não sorri para fotos. Eles são a resistência contra a ditadura do sorriso. Lembro-me dos retratos de meus avós na parede da sala, sérios, solenes, graves. Hoje, porém, a ordem é mostrar os dentes, querendo ou não. Todos temos o desejo de guardar uma imagem feliz de nossos momentos, sejam eles especiais ou mesmo banais. Por isso sorrimos, por vezes sem vontade, num reflexo condicionado. Muitos de nós já sabem até sorrir espontaneamente na hora que querem, fazendo parecer natural. É a espontaneidade a serviço da obrigação. Não sou contra o sorriso da foto. No fundo tenho pena dele. Afinal, é apenas a expressão do sincero mas frustrado desejo humano de ser sempre feliz; uma humilde ilusão cuja duração não passa de um flash. Sou, sim, contra a obrigação de sorrir.


- Inspirado pelo texto "Sorria", de Contardo Calligaris, publicado na Folha de S. Paulo na última quinta-feira, dia 28/06/2012.

terça-feira, 26 de junho de 2012

ANOS INCRÍVEIS


O sofá, a TV, o DVD, o cobertor. A cena se repete. Aconchegados um ao outro, ficamos os quatro, minha mulher, meus filhos e eu, mais nossa cachorrinha, assistindo aos episódios da série "Anos incríveis". Acho que todos conhecem a história. Em off, Kevin narra sua adolescência, vivida num subúrbio americano entre os anos de 1968 a 1974. Seus encontros e desencontros em casa, na rua, na escola, são apresentados com extrema delicadeza, emoção e bom humor. Muito me encanta seu caráter observador. Sua atenção aos pequenos detalhes é comovente. Tudo me soa familiar: a época, as dúvidas, as alegrias, as angústias. São vários os episódios inesquecíveis, como aqueles três sobre seu professor de matemática, afinal heróis podem ser encontrados onde a gente menos espera. Para Kevin, aqueles anos de descobertas foram seus anos incríveis. Os meus também foram. Contudo mais incríveis ainda para mim são os momentos que passamos abraçados no sofá.


terça-feira, 19 de junho de 2012

DEVANEIOS


Era a primeira vez que o menino via um corpo num caixão. Ao contrário do medo habitual de fantasmas, espíritos e coisas do gênero, sentiu-se absolutamente encantado com a placidez da jovem morta: o rosto alvíssimo, os lábios delicados, o nariz afilado, o cabelo escuro, preso para trás. Tudo nela era encanto, altivez e elegância. Assim, alheio a todas as lamentações dos que o cercavam, permanecia estático, absorto, hipnotizado por aquela beleza inesperada, que mais lhe parecia um quadro, uma pintura. Mais tarde, na cama, sem sono, viu-se pensando na jovem falecida. Imaginava ela abrindo a porta e vindo deitar-se ao seu lado. Quanto mais pensava, mais sentia-se retesado, até que, sem resistência, entregou-se aos devaneios tão típicos da idade, tremendo dos pés à cabeça. Curiosamente, depois daquela noite, nunca mais sentiu atração semelhante. Porém ainda hoje, passados tantos anos, é capaz de lembrar-se daquela que foi, de certa forma, sua primeira paixão arrebatadora. 


domingo, 10 de junho de 2012

A ÚLTIMA CONFISSÃO


Era Páscoa de 1988. Estava com minha mãe numa igreja cheia de almas sedentas de perdão. No confessionário, atalhei: _Sr. Padre, estou aqui apenas para atender a um pedido de minha mãe. Meus pecados são comuns, iguais aos de todo mundo, inclusive aos seus. Por isso, me desculpe, mas não irei contar nada da minha vida. Fique à vontade para me dar ou não a sua absolvição. Com todo respeito, isso não faz diferença para mim. Após alguns instantes de silêncio, o padre iniciou sua fala, pareceu-me um discurso padrão. Ao final, recomendou-me duas ave-marias e dois pai-nossos. Como na época ainda rezava, rezei. Ao terminar, minha mãe me perguntou se eu tinha falado alguma coisa diferente no confessionário. Não, por quê? Disse-me ela que quando saí de lá, o padre colocou a cabeça para fora para me olhar. Curioso, quis ver quem lhe fizera aquela insólita confissão, cuja absolvição, não sei se por dever de ofício, bondade ou medo, ele não negara.


terça-feira, 5 de junho de 2012

PARA AUGUSTO DOS ANJOS



                           Versos eternos
                               
                         Vês?, meu querido irmão.
                         Hoje foi o dia da tua morte
                         Estás entregue à própria sorte
                         Bem a sete palmos do chão!

                         Estás morto irremediavelmente.
                         Nenhum anjo se compadeceu
                         Nenhuma luz sequer apareceu
                         Para trazer-te à vida novamente.

                         Assim teu corpo, já sem vida,
                         Com o eterno pó fará aliança
                         E, fadado à paz esquecida,

                         Terás como derradeira lembrança
                         O riso infame da morte - essa bandida -
                         Triunfando sobre tua última esperança!

                                                              11/11/1997

 - modesta homenagem a Augusto dos Anjos (20/04/1884 - 12/11/1914), autor do inesquecível soneto "Versos íntimos".