terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A SIMPLIFICAÇÃO DE BUDA

Segundo Buda, são quatro as nobres verdades: viver é sofrimento (primeira), ignorância e desejo dão causa ao sofrimento (segunda), mas ambos podem ser extirpados (terceira) através do Nobre Caminho dos Oito Passos (quarta). Dizer que viver é sofrimento é, ao mesmo tempo, uma simplificação e uma negação da complexidade da vida. Assim como também o é dizer que a ignorância e o desejo sempre dão causa a esse sofrimento (a consciência da morte, por exemplo, traz angústia e o desejo nos distrai dessa verdade inexorável). Aliás, a ignorância sequer pode ser de todo extirpada pois, além da impossibilidade de se obter a consciência plena, nosso consciente está atrelado ao inconsciente e, ambos, percebem o mundo de modo distintos. Também os desejos não podem ser extirpados, porque nossa sobrevivência mental está justamente baseada no ciclo: desejo, realização (ou não-realização), frustração, novo desejo. Ser humano é tentar conciliar contraditórios: impulsos instintivos com anseios morais, consciência com inconsciência, e assim por diante. Infelizmente não há simplificação possível: somos complicados por natureza.

(extraído do livro "O óbvio", de minha autoria)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

LEMBRAR NÃO É VIVER

"Quando chegar o dia em que você viver apenas de lembranças, de que lembranças você quer viver?" Pergunta o narrador do comercial de uma motocicleta. A frase, ainda que bem construída, revela uma ilusão tão comum quanto equivocada. Não, lembrar não é viver de novo; lembrar é lembrar, apenas. Isso porque um passado cheio de boas lembranças não supre as ausências e lacunas do presente. Ao contrário, mete-nos numa cruel e injusta comparação. Primeiro, porque é humano idealizar o próprio passado. E segundo, porque também é humano não se satisfazer com o próprio presente. Gostaria de dizer que essa combinação molda nosso futuro. Mas sou realista demais para isso. O futuro é uma expectativa de vida que não depende da nossa simples vontade. Aliás, a mensagem de fundo daquele comercial é perversa: não há presente nem futuro na velhice; só passado. Senhor redator, tanto faz olhar para trás ou para frente. O passado é tão ilusório quanto o futuro. Ambos são negações da realidade de que só existe um tempo, o presente. Isso vale na mesma medida para jovens e para velhos; para os que têm do que lembrar e para os que não têm.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O MENINO DE MADEIRA

Bastou que na ecografia o médico rompesse seu silêncio para que a tensão se instalasse. E foi assim durante toda a gravidez. Exames, dúvidas e medo, muito medo. Veio o parto, depois duas cirurgias. Mais exames. Depois, enfim, o alívio da normalidade, embora supervisionada e controlada. Gabriel, meu filho, desde cedo se mostrou tão corajoso quanto lindo. Já crescido, ele foi mordido por um cão grande no supercílio, logo acima do olho direito. No hospital deixou que a médica fizesse seu trabalho sem mover um músculo sequer. Ela mesma, ao final, chegou a perguntar se ele não tinha adormecido. Chuang Tzu, filósofo chinês que viveu no século II a.C., conta a história do príncipe que contratou um treinador para seu galo de briga. Mas só depois de esperar o tempo certo ouviu-o dizer: "Agora ele está pronto. Quando outra ave grasna seu olho nem pisca. Fica imóvel como um galo de madeira. É um brigador amadurecido. Outras aves olharão para ele de relance e fugirão."


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A VIGÍLIA

O silêncio do café da manhã foi quebrado por um estrondo. Parecia que um dos vidros da casa tinha sido atingido por algo. Olhamos para baixo e vimos na calçada dois pequenos pássaros. Um deles, em pé, observava o outro que jazia, inerte. Estava esclarecido o fato: uma manobra de voo mal sucedida fora fatal. Mas por que se mantinha tão próximo? Por que não voava? Teria se ferido também? Não, ao menos não fisicamente. Percebemos então que, em vão, esperava ele uma reação de seu companheiro (ou seria companheira?). Recusava-se a seguir seu caminho. E assim permaneceu, tão silencioso quanto incrédulo. Era como se para ele o tempo tivesse parado, entrado  num estado de suspensão, numa realidade paralela. Minha mãe contou-me que aquela cena se estendeu por mais de uma hora. E só não foi mais longa porque ela, tomada pela angústia, não suportou mais ser mera expectadora. Aproximando-se, falou ao pássaro num sussurro que nada mais poderia ser ser feito, que ele deveria ir embora porque a morte, infelizmente, é sempre irremediável. O pássaro, parecendo entender, alçou seu voo solo. 


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

MEU APÓSTOLO PREFERIDO

Simão, mais conhecido como Pedro, era talvez o apóstolo preferido de Cristo. O meu, com certeza. Inseguro, sempre desconfiou de seu valor e de seu caráter. Humano, quis ser poderoso como seu Mestre ao tentar caminhar sobre as águas. Mas, como tinha pouca fé, duvidou e acabou quase afogado no mar. Humano, desconfiou de sua capacidade quando Jesus lhe disse que sobre ele edificaria a sua igreja. E, finalmente, escondido por entre as sombras da noite, negou seu Messias três vezes antes do galo cantar, com medo de ser igualmente preso e torturado. Humano, sem dúvida, comoventemente humano. Mais humano, porém, do que viver é saber morrer. E Pedro morreu crucificado. Mas de um modo diferente. Isso porque revelou-se naquele grave momento toda sua simplicidade, força e coragem. Ele pediu que sua cruz fosse fincada de cabeça para baixo, porque não se julgava digno de morrer da mesma forma que seu grande amigo Jesus de Nazaré.