terça-feira, 29 de novembro de 2011

EU NÃO AMO OS POBRES

Não é uma declaração de ódio social. Para não ser mal compreendido, explico: não amo nem odeio os pobres. Isso porque não me parece razoável  amar pessoas coletivamente e, menos ainda, por sua condição sócio-econômica. Sou capaz de amar ou odiar pessoas, mas individualmente e por razões alheias às suas finanças. Por isso sempre estranho uma declaração de amor aos pobres. Primeiro, porque me parece segregativa, como se pobres pertencessem a uma categoria específica de seres humanos. Note que quem diz amar os pobres está a dizer, em via oblíqua, que não é um deles.  Segundo, porque não se é pobre ou rico, mas se está pobre ou rico. Não há, em regra, segurança nem definitividade numa coisa nem noutra. Elas são sempre circunstanciais. Não é novidade dizer que amar os pobres é provavelmente uma forma de aplacar o sentimento de culpa por um mundo tão desigual e injusto. Mas me pergunto se essa "consciência social" não seria a nova roupagem da velha culpa católica...


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

DOIS DIAS, DOIS TERREMOTOS

Santiago, terça-feira, 4:42 da manhã. Estou no quarto de um hotel. Acordo sobressaltado com um som que parece vir da porta. A fechadura vibra. Em seguida vejo que não é só a fechadura, o armário e a cama também tremem. Cogito, sonolento, a improvável hipótese de um casal fazendo sexo no quarto ao lado. Mas, de repente, tudo se acalma, volta o silêncio e só nesse momento atino para o que realmente acontecera. Curitiba, quarta-feira, 8:20 da manhã. Estou no consultório de um cardiologista. A consulta é de rotina, mas recebo um diagnóstico inesperado cuja gravidade será confirmada ou descartada por outros exames que farei nos próximos dias. Novamente sinto a terra tremer. Dentro de mim, a mesma sensação de impotência, fragilidade e desamparo. Mais tarde me ocorre como o eletrocardiograma, com seus "rabiscos", é parecido com a medição da magnitude dos terremotos. O desta terça foi de 5,6 graus na escala Richter. Não causou danos; só susto aos menos acostumados. Então a vida seguiu normal, tanto lá quanto aqui, mas não sem a lembrança da vulnerabilidade que nos espreita.



quinta-feira, 17 de novembro de 2011

DEUS EXISTE, PAI?

Um dia meu primogênito me fez a pergunta fatal, a mesma que intriga a humanidade desde sempre: Deus existe? Tinha ele cinco, seis anos, se tanto. Parei o que estava fazendo. Olhei-o com gravidade. Respirei fundo e, fazendo uma pausa dramática, respondi: não sei. Como a pergunta me pegou de surpresa, essa foi a resposta que julguei mais honesta naquele momento. Hoje, passado o tempo, continuo com a mesma resposta. Não sei. Note-se que a pergunta foi se Deus existe e não se eu acredito em Deus. Perguntas semelhantes na forma, mas abissalmente diferentes no conteúdo. Afinal, quem pode afirmar com segurança se de fato Deus existe ou não? Mas percebi que o olhar inquisidor e ávido de uma criança esperta pedia resposta mais concreta, mais elucidativa. Então completei: algumas pessoas acreditam em Deus, filho; outras, não. Eu não acredito. Nova pausa. Mas essa é a minha opinião. A sua, um dia você descobrirá sozinho. 


sábado, 12 de novembro de 2011

UMA FOME DE 1976

Nelson Rodrigues dizia sentir por vezes uma fome de 1918, representada pela utopia do pão com ovo, merenda alheia desejada por ele nos tempos de escola. _Hoje vamos para a cidade! Essa frase, dita por minha mãe, era motivo de deleite para mim. Sempre gostei  de andar pelo centro de Curitiba. Eis o roteiro da minha felicidade: ônibus, Praça Rui Barbosa, Rua XV, lojas de tecido, Rua Voluntários da Pátria, acariciar cãezinhos no Aviário São Paulo e pastel de carne com chocomilk na Pastelaria Oriental. Nunca deixei de caminhar pelo centro. Gosto dos prédios, das praças, das ruas e do vai-e-vem de pessoas. Convivo sem susto com suas mazelas e vicissitudes. E quando, para minha satisfação, estou acompanhado de meus filhos, bate aquela fome de pastel de carne com chocomilk. É quando sutilmente volto a ser aquele menino da Vila Hauer que, acompanhado da mãe, sentia-se completamente encantado pela cidade.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O MENINO QUE LAMBIA PRATOS

Em casa, quando criança, finda uma refeição, eu lambia meu prato. Meu irmão, ao contrário, deixava restos. Um  fato tão banal quanto revelador para um lar sem rompantes de afetividade. Pudor e comedimento imperavam quando se tratava de expressar sentimentos. Palavrão só fui ouvir na escola, aos onze anos. Mas volto ao prato. Não é novidade falar da relação íntima entre comida e afetividade. Só hoje percebo o quão meu gesto expressava carência afetiva. Veja, mãe, eu aceito de bom grado esse afeto em forma de comida! Talvez porque eu julgasse que deveria fazer por merecer essa oferta. Já os restos que meu irmão deixava no prato poderiam querer dizer o oposto: Mãe, por mais que você se esforce, seu afeto não me é o bastante. Como relacionamentos afetivos são encontros de neuroses, um salve-se quem puder emocional, não sei qual filho recebia mais atenção. Pobre mãe, tão vilã e tão vítima, tão manipuladora e tão manipulada, quanto seus dois filhos homens, carentes e insaciáveis, dois tipos tipicamente humanos.   


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O RATO E O GAVIÃO

Não, esta não é uma fábula de moral edificante. Ao contrário, trata-se de uma história real e sem moral alguma. Eis o fato: em frente à minha casa, um gavião acabava de dar um voo rasante. Trazia  nas garras um rato enorme, recém catado na sarjeta. Em seguida, predador e presa, estavam no telhado vizinho. O meu ponto de visão era privilegiado, parecia até programa de TV a cabo. A ave deixou o roedor, já morto, a um metro de si. Perscrutava a existência de algum risco. Não havia, porém, nenhuma ameaça. Só pássaros menores, que voavam a certa distância movidos por curiosidade e excitação. Até que, finalmente, deu-se início ao banquete macabro. Como não é educado assistir refeição alheia, tratei de cuidar da vida. Não são poucos os defeitos do ser humano, mas é sua mente criativa e seu coração sensível que dão sentido a esse mundo natural onde, em nome da sobrevivência, impera a matança generalizada.