sábado, 23 de fevereiro de 2013

GAITA


Tinha mulher e três filhas, meninas ainda, para quem tocava doces melodias em sua gaita de boca, quando um dia, no trânsito, bateu de leve no pára-choque traseiro do carro da frente. Era uma situação simples de ser contornada, mas não foi. O outro motorista, armado, saltou do carro em fúria. Ninguém soube se por acaso, como concluiu o Tribunal do Júri que o inocentou mais tarde, ou se por querer mesmo, a arma foi disparada. Ele caiu na rua, atingido mortalmente na cabeça, bem na frente da família que o aguardava no carro. O pai, que nunca se conformou com a morte cretina do filho, esperou o tempo passar para numa noite sequestrar o assassino, levando-o até um cemitério. Tinha numa mão um revólver e na outra a gaita do filho que jazia na sepultura diante deles. Encolhido no chão, o rapaz implorou pela própria vida. Eu vou te uma chance, seu merda!, disse o velho. O assassino viu uma esperança. Toca a gaita! O quêToca a gaita! Eu não sei tocar, porra! Toca a porra dessa gaita! Meu filho, aquele que você matou, adorava o som dessa gaita. Então toca ela! Se ele levantar da cova, eu te deixo ir embora. O outro chorou alto de pavor.


(extraído do livro de contos "As coisas que chamamos de nossas")

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

OS TRÊS DESEJOS


Se um gênio da lâmpada nos oferecesse a realização de três desejos penso que, excluindo-se o de ter saúde, que é um desejo tão premente quanto sem graça, a maioria iria pedir: dinheiro, fama e felicidade. Veja-se que o gênio sempre oferece capciosamente a satisfação de desejos e não de necessidades. Eis aí o perigo: desejo nem sempre é necessidade. Ou melhor: em regra, desejo é um disfarce de uma necessidade vil ou torpe. Desejo por dinheiro e fama, por exemplo, é apenas sintoma da nossa falta de felicidade ou, mais precisamente, da nossa precária condição emocional. Por trás deles, na verdade, está a necessidade de poder e de aceitação. Afinal, vive-se bem com pouco dinheiro e com fama nenhuma. Complicado. Talvez fosse melhor usar a tal lâmpada apenas como adorno de decoração. 


segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

AMIZADES VIRTUAIS


Amizades virtuais são, em regra, superficiais, limitadas, rápidas, descompromissadas e, por isso tudo, ótimas. Penso ser equivocada a comparação entre uma amizade do mundo virtual com outra do mundo real pelo simples motivo de que são coisas diferentes, tanto na essência quanto no objetivo. Isso não impede, porém, que em certos casos elas possam ser complementares uma da outra. Aliás, a virtualidade aumentou a quantidade e a intensidade de nossa interação social. Mas não melhorou a qualidade. Normal. Afinal nossas manifestações apenas expressam o que somos ou o que gostaríamos de ser. Nada obstante, por outro lado, há os que veem a virtualidade das relações como uma regressão. Normal também. Afinal sempre há os saudosistas de um passado maravilhoso que nunca existiu.