segunda-feira, 26 de novembro de 2012

BANZO RIOGRANDENSE


Em Curitiba é comum se ver automóveis com adesivo da bandeira do Rio Grande do Sul. São gaúchos riograndenses que, mesmo morando aqui há anos, seguem cantando orgulhosos as grandezas da terra que deixaram para trás. Ou seja, vieram apenas de corpo, mas não de alma, o que é sempre normal em qualquer emigração ou imigração. Isso porque cultivar raízes reforça a própria identidade, fragilizada pela distância. Porém, por outro lado, esse apego torna ainda mais penoso o processo de integração, não apenas social mas principalmente mental. No fundo essa ufania gauchesca só faz mostrar o quão triste é para alguns viver numa terra sem o senso de pertencimento. 


segunda-feira, 19 de novembro de 2012

CAÇA ÀS BRUXAS NO DICIONÁRIO


Debate-se hoje o uso de certas palavras que poderiam ter conotação racista. Denegrir, por exemplo. Pelo dicionário é tornar negro, manchar, causar infâmia. Ou seja, seu significado não tem nada a ver com a raça negra. (Aliás, não existe pessoa com pele de cor negra e nem branca). A questão é que, histórica e psicologicamente, a cor negra (preta) é associada a coisas negativas: a noite é escura, as trevas representam o desconhecido etc. Entendo que não dê para mudar a denominação da raça negra e que, ao contrário, deve-se ter orgulho dela justamente para afastar o caráter pejorativo do termo. Agora, por outro lado, não dá para ficar caçando bruxas no dicionário, desejando abolir o uso de expressões cujo significado passa longe da questão racial.


domingo, 11 de novembro de 2012

A BONDADE DA ESQUERDA


Já fui politicamente de esquerda. Hoje não sou mais tão pretensioso. Para ser de esquerda, é preciso julgar-se genuinamente bom e crer que o mundo se divide entre bons e maus. Pessoalmente não acredito mais nem em uma coisa nem em outra. (Não entrarei no mérito dos que usam essa ideologia para ganhar a vida de modo oportunista, porque o caráter é anterior à opção político-ideológica). Ser de esquerda é sobretudo uma profissão de fé. Funciona como uma religião onde, em troca da conversão e dedicação abnegadas, se recebe o conforto emocional do seguinte espelhamento hipócrita: minha ideologia é boa logo sou igualmente bom.


segunda-feira, 5 de novembro de 2012

CAMINHANDO COM A MÃE


Não é novidade dizer que se gosta para sempre do que se gostou quando criança. Tal sentimento é retratado com absoluta delicadeza no desenho "Ratatouille". Tudo acontece quando o sisudo crítico culinário Anton Ego experimenta o ratatouille preparado por Rémy, o insólito ratinho cozinheiro. Embora simples, o prato é feito com tamanha perfeição que o crítico, até então impassível e implacável, acaba por se desmanchar diante da lembrança que aquela experiência gustativa traz da sua infância e do carinho da mãe. Pois bem, dia desses me dei conta porque gosto tanto de caminhar por cidades e porque sempre vejo tudo com admiração. Simples: memória afetiva. Caminhar por calçadas é para mim, de certa forma, a repetição do prazer lúdico que sentia quando fazia isso de mãos dadas com minha mãe. 



segunda-feira, 29 de outubro de 2012

ÍNDIOS


A questão indígena não é humanista: é social. Eis a realidade: não dá mais para índio viver como índio. Reserva é coisa para animais selvagens, não para seres humanos. Por isso é preciso fazer uma política de gradativa integração dos índios à sociedade. Afinal, todos os nascidos no Brasil, índios, brancos, negros, pardos, amarelos, são igualmente brasileiros. Essa legislação paternalista não conseguiu salvar o índio da sua anunciada, escancarada e lenta dizimação. Que, ao menos, uma nova lei possa fazer com que as suas futuras gerações possam viver dignamente apenas como brasileiros. Bem-vindos ao século XXI. Emprego, imposto, supermercado, escola, trânsito, futebol, televisão. Não é fácil mas acostuma. 


segunda-feira, 22 de outubro de 2012

CONSCIÊNCIA BRANCA


Sou contra a discriminação de pessoas por qualquer motivo. Aliás, não apenas eu, o art. 5o. da Constituição Federal também é contra. Contudo o nosso governo vem adotando o que se pode chamar de "apartheid oficial" com a sua política de ação afirmativa. Não bastasse as cotas de ingresso nas Universidades Federais, pretende-se agora dar a mesma vantagem em relação aos concursos públicos federais. Não vou entrar no mérito das cotas (já fiz isso no texto "Cotas da humilhação"). Apenas farei duas perguntas: 
- Acaso as mulheres, sempre oprimidas, precisaram de cotas para  ingressarem nas universidades ou no funcionalismo público?
- Será que no futuro essa política discriminatória não irá criar esdrúxulos movimentos sociais de garantia dos direitos dos brancos?


segunda-feira, 15 de outubro de 2012

OS FILHOS QUE NÃO TEMOS


Outro dia me ocorreu a diversidade imensa de filhos que não temos. No meu caso, estou satisfeito com os dois que a vida me deu. Mas constatei a imensidão de variações que a combinação entre apenas um homem e uma mulher tem para gerar distintos seres humanos. São, em média, trezentos e cinquenta milhões de espermatozoides em cada ejaculação. Ou seja, dá para imaginar a variedade de filhos que poderíamos ter (e não temos). Note que disse variedade e não quantidade. E como seriam esses filhos? Melhores? Piores? Não importa, o que importa é que seriam diferentes. E isso me parece fascinante. Aliás, essa é mais uma faceta da diversidade biológica que rege a vida. Há mesmo um mundo dentro de cada um de nós.


sexta-feira, 5 de outubro de 2012

COINCIDÊNCIAS INÚTEIS


É desejo comum acreditar que na vida não há coincidência, que nada é por acaso. Minha percepção, todavia, é a inversa: tudo é coincidência, tudo é por acaso. Diria mais: a grande maioria das coincidências é absolutamente inútil e irrelevante. Explico: duas pessoas estranhas se cruzando numa rua de uma grande cidade é uma coincidência extraordinária. Sim, a probabilidade matemática disso ocorrer é extremamente mínima. Mas acontece todo dia, a todo instante. E qual é a relevância desse fato? Nenhuma. O que ele significa? Nada. Isso porque apenas uma fração infinitesimal dessas coincidências afeta nossas vidas. As boas chamamos de sorte; as ruins chamamos de azar. O resto é profissão de fé.


domingo, 30 de setembro de 2012

SOMOS TODOS PAIS ADOTIVOS


No mundo dos adultos existe a diferenciação entre filhos adotivos e filhos biológicos. No mundo das crianças, não: todo pai é adotivo. Isso porque a criança imediatamente adota seu pai sem a consciência da legitimidade deste. Em relação à mãe acontece o mesmo, mas logo a questão do elo carnal é resolvida com a famosa frase: você saiu da barriga da mamãe! Já o pai, privado de falar sobre a procedência escrotal da criança, se apresenta apenas como o pai. E essa apresentação, tão básica quanto linda, é suficiente para que o filho o aceite e o ame. Só bem mais tarde ele saberá da real ligação genética entre ambos. Aliás, isso prova que nascemos sábios e simples, mas morremos tolos e complicados.


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

O PROBLEMA É DOS ADULTOS


Ouvia pelo rádio a fala de um especialista em educação. Dizia ele, citando alguém, que as crianças devem ser protegidas do mundo. Sua fala era mansa e cheia de propriedade. A certa altura, mencionando o beijo gay mostrado no horário político eleitoral de Santa Catarina, ressaltou o impacto negativo que isso teve, por exemplo, em um menino de oito anos de idade. Essa abordagem só me reforçou a certeza de que o problema do preconceito é mesmo dos adultos. Um dia, não me lembro quando nem onde, falei para meus dois filhos que também há amor entre pessoas do mesmo sexo. Não foi preciso protegê-los desse fato, apresentado a eles como natural. É tola a crença de que a sexualidade pode ser definida ou influenciada pelo que se vê na rua ou na televisão. Seria muito fácil e simples se fosse assim. A coisa, porém, é muito mais complexa. Crianças precisam ser protegidas dos falsos moralistas.

domingo, 9 de setembro de 2012

POR QUE FALAMOS TANTO?


Falamos muito, sobre tudo. Vida, pais, filhos, trabalho. Mas não falamos só o que pensamos. Falamos mais o que gostaríamos de pensar e menos o que de fato pensamos. Falamos muito, sobre tudo. Deus, amor, emoções, morte. Falamos por impulso, para tentar calar a voz interior que teima em dizer o contrário. Uma voz que duvida de quase tudo o que dizemos. Na verdade, falamos para nós mesmos e não para os outros. Falamos para tentar nos convencer da nossa versão. Por isso repetimos tanto o que falamos. Mas também falamos muito apenas porque precisamos falar, para conter ebulições internas, revoluções mentais, realidades virtuais. Falamos muito para que faça sentido, para que não seja em vão. Falamos muito porque temos medo da calma triste do silêncio.

domingo, 2 de setembro de 2012

SER PAI, HOJE


Perfeito o diagnóstico de Contardo Calligaris ao dizer que a paternidade hoje gera mais angústia e frustração do que no passado por dois motivos: um, porque criar filhos não fazia parte de um plano de felicidade e outro, porque as crianças não eram o centro da vida dos adultos. Mesmo assim, não penso que ser pai hoje seja mais difícil. O ser humano não muda em sua essência, o que muda é o seu jeito de viver. Criar filhos é sempre uma aposta da natureza; não há garantia de nada. Talvez a sabedoria que se atribua aos pais de outrora fosse, na verdade, um misto de omissão e ignorância. Isso porque pais não sabiam onde filhos estavam na maior parte do tempo e eram alheios às questões emocionais. De fato, as crianças eram antes mais bem educadas, principalmente em casa... Hoje vive-se o inverso: crianças mal educadas, principalmente em casa, e pais excessivamente interessados em suas aflições. Ação demais acaba sendo tão prejudicial quanto ação de menos. Mas sempre a geração seguinte leva a vantagem de ter mais conhecimento que a outra. E isso faz diferença, porque conhecer é ter a possibilidade de escolha, apesar de toda frustração e angústia que isso possa trazer. 

terça-feira, 28 de agosto de 2012

CÁLICE



Quase não acreditaram quando viram o mestre e seus seguidores entrando em sua casa para o jantar. O marido nem se importou de ficar sem lugar na mesa porque, no fundo, só pensava fazer inveja aos vizinhos. A mulher ficou na cozinha, mais preocupada com a louça cara que iriam usar. Durante a refeição não ouviam direito as palavras do líder que, sentado bem ao centro, falava de um modo muito plácido.  Mas ouviram quando ele ergueu diante dos olhos o cálice que estava à sua frente e disse: tomai, este é o meu sangue!O marido se assustou; não podia ver sangue. A mulher só pensou se aquilo mancharia o cálice. Em seguida, ele anunciou que um dos seus iria traí-lo. Todos duvidaram, alvoroçados. O casal, ainda na cozinha, tentou adivinhar. Pra mim é esse que tá no lado direito dele, todo solícito, disse o marido, os bonzinhos são os piores. A mulher preferiu apostar no discípulo mais calado, intuição feminina.Tarde da noite, foram-se todos, alimentados e agradecidos. A mulher, não se contendo, correu  examinar o cálice usado pelo mestre. Ficou aliviada quando viu que nele não havia sangue, mas apenas vinho.


(Extraído do livro "As coisas que chamo de nossas")

sábado, 18 de agosto de 2012

O BEIJO LÉSBICO


Vai ser difícil, eu sei. Mas tente abstrair a informação do título. Um casal qualquer, num shopping qualquer. A intimidade no olhar não deixa dúvida: virá um beijo. E vem. Nada efusivo, só um beijo. Surge uma agente de segurança. Ela diz algo e se afasta. Aproximo-me e pergunto o que foi dito. Que é proibido beijar naquele local. Dirijo-me ao SAC para manifestar meu repúdio. Um improvável retorno me é prometido. Lembro que minutos antes beijei minha mulher da mesma forma sem represália alguma. Logo, vejo que a intervenção se deu apenas por ser aquele um casal de moças. Como testemunha, vivi emoções tão intensas quanto distintas. Primeiro a curiosidade, era a primeira vez que via meninas namorando. Da curiosidade fui para a satisfação, por constatar ali a ternura de um casal apaixonado. Então veio a surpresa, pela interrupção abrupta da cena, transformada em indignação, porque discriminação é crime. Por fim, só ficou a tristeza por ver um casal censurado apenas por expressar amor.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

FAZENDO AS PAZES


Um amigo fez as pazes com seu pai num templo budista: perdoou e sentiu-se perdoado. Bonito, sem dúvida. Mas o fato de o pai ter morrido muitos anos antes disso foi fundamental para o desfecho pacífico da história. Relacionamentos são complicados, uns mais outros menos. Isso porque temos todos carências, vontades e necessidades não atendidas por quem amamos. Aliás, é fácil identificá-las em si próprio. Difícil é identificar essas mesmas carências, vontades e necessidades no outro. Por essa razão, relacionamentos só funcionam quando bilaterais e recíprocos, em intenções, sentimentos e atitudes. Caso contrário, há sempre muita dor, frustração e mágoa. Só mesmo a morte para resolver um relacionamento que a vida não deu conta de fazê-lo. Na verdade, nesse caso, não se resolve: o que se faz são as pazes com a própria consciência.

sábado, 4 de agosto de 2012

A QUESTÃO DA CARNE


Escravidão, crueldade e morte: esse é o destino diário de uma infinidade de animais para que a humanidade se alimente. É triste isso, concordo. Mas não foi o homem o primeiro animal a se alimentar da carne de outro, muito menos o único. A natureza tem regras próprias de sobrevivência: carnívoros comem carne; herbívoros, plantas; e onívoros, as duas coisas. Nós, onívoros, podemos sobreviver sem consumir proteína animal, embora seja ela nosso alimento mais básico e completo. Mas volto à questão moral. Toda essa matança que promovemos em troca da carne é mesmo injusta, mas ela é natural. Apenas sistematizamos e organizamos o que já ocorre sem o menor constrangimento no ambiente selvagem. O mundo não é um lugar justo. Justiça, aliás, é um conceito exclusivamente humano. Quando aceitaremos que a natureza está pouco se lixando para o que o homem pensa?

segunda-feira, 30 de julho de 2012

À ESPERA DE UM MILAGRE


Foi com grande consternação que recebi a notícia de que uma querida amiga foi diagnosticada com grave enfermidade. Não sou a pessoa mais indicada para falar de milagre, mas confesso que me vejo desejando um, fervorosamente. Tento entender tudo o que me cerca, mas há muito percebi que para certos fatos não há explicação. Não plausível, ao menos. A realidade sempre acaba superando nossa capacidade de compreensão, até mesmo por seu caráter imprevisível e improvável. Basta lembrar que toda vida do planeta surgiu a partir da singeleza de um organismo unicelular. Não era provável que tudo se desenvolvesse a partir daí, mas foi o que aconteceu. Ou seja, há sempre um espaço entre realidade e possibilidade. E é nesse espaço, por vezes exíguo, que depositamos toda nossa esperança.  



sábado, 21 de julho de 2012

MULHERES EM MOVIMENTO


Sou um constante expectador das mulheres e seus movimentos. Embora impessoal e fugaz, meu olhar é atento e devotado. Gosto de observar como falam, andam, sentam, comem. O que vestem e como vestem. Acessórios revelam estilo, postura. Sons e silêncios, personalidade. Pequenos maneirismos me encantam igualmente. Quase todas mexem nos cabelos; outras, na boca, no nariz. Sozinhas, têm o olhar  distante que indica um interior em ebulição. Mulheres pensam muito, sonham muito, imaginam muito, deliram muito. Tudo nelas é intenso, urgente. Toda mulher tem sua beleza, seu detalhe, sua história. Toda mulher é um convite para o infinito. Mulheres não têm começo nem fim. Sorrisos, lábios, seios, ombros, braços, mãos, dentes, pés, quadris, olhos, pernas. Mulheres... Uma vida é pouco para tanto.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

FILHOS SEM RELIGIÃO


Embora tenha sido criado num lar católico, vivo hoje num lar sem religião. Não há orgulho nem vergonha nessa afirmação. Afinal, isso não nos torna melhores nem piores do que ninguém. Ao contrário do que se ouve, valores morais não dependem de valores religiosos. Uma coisa não exclui nem inclui outra necessariamente. Respeitar o próximo, por exemplo, é antes e sobretudo uma atitude de natureza moral. Por essa razão nunca tive dilema algum quanto à ausência de religiosidade na criação de meus filhos. E não falo isso da boca para fora, tanto que eles estudam num colégio de vocação católica. Uma vez, ao passarmos em frente à igreja Bom Jesus, no centro de Curitiba, o Gabriel, ainda bem pequeno, que olhava compenetrado aquela arquitetura alta, imponente e pontiaguda, disparou: bum, bum, bum, Castelo Rá-tim-bum. Sem dúvida, um efeito colateral. Fazer o quê?

sábado, 30 de junho de 2012

A DITADURA DO SORRISO


Admiro quem não sorri para fotos. Eles são a resistência contra a ditadura do sorriso. Lembro-me dos retratos de meus avós na parede da sala, sérios, solenes, graves. Hoje, porém, a ordem é mostrar os dentes, querendo ou não. Todos temos o desejo de guardar uma imagem feliz de nossos momentos, sejam eles especiais ou mesmo banais. Por isso sorrimos, por vezes sem vontade, num reflexo condicionado. Muitos de nós já sabem até sorrir espontaneamente na hora que querem, fazendo parecer natural. É a espontaneidade a serviço da obrigação. Não sou contra o sorriso da foto. No fundo tenho pena dele. Afinal, é apenas a expressão do sincero mas frustrado desejo humano de ser sempre feliz; uma humilde ilusão cuja duração não passa de um flash. Sou, sim, contra a obrigação de sorrir.


- Inspirado pelo texto "Sorria", de Contardo Calligaris, publicado na Folha de S. Paulo na última quinta-feira, dia 28/06/2012.

terça-feira, 26 de junho de 2012

ANOS INCRÍVEIS


O sofá, a TV, o DVD, o cobertor. A cena se repete. Aconchegados um ao outro, ficamos os quatro, minha mulher, meus filhos e eu, mais nossa cachorrinha, assistindo aos episódios da série "Anos incríveis". Acho que todos conhecem a história. Em off, Kevin narra sua adolescência, vivida num subúrbio americano entre os anos de 1968 a 1974. Seus encontros e desencontros em casa, na rua, na escola, são apresentados com extrema delicadeza, emoção e bom humor. Muito me encanta seu caráter observador. Sua atenção aos pequenos detalhes é comovente. Tudo me soa familiar: a época, as dúvidas, as alegrias, as angústias. São vários os episódios inesquecíveis, como aqueles três sobre seu professor de matemática, afinal heróis podem ser encontrados onde a gente menos espera. Para Kevin, aqueles anos de descobertas foram seus anos incríveis. Os meus também foram. Contudo mais incríveis ainda para mim são os momentos que passamos abraçados no sofá.


terça-feira, 19 de junho de 2012

DEVANEIOS


Era a primeira vez que o menino via um corpo num caixão. Ao contrário do medo habitual de fantasmas, espíritos e coisas do gênero, sentiu-se absolutamente encantado com a placidez da jovem morta: o rosto alvíssimo, os lábios delicados, o nariz afilado, o cabelo escuro, preso para trás. Tudo nela era encanto, altivez e elegância. Assim, alheio a todas as lamentações dos que o cercavam, permanecia estático, absorto, hipnotizado por aquela beleza inesperada, que mais lhe parecia um quadro, uma pintura. Mais tarde, na cama, sem sono, viu-se pensando na jovem falecida. Imaginava ela abrindo a porta e vindo deitar-se ao seu lado. Quanto mais pensava, mais sentia-se retesado, até que, sem resistência, entregou-se aos devaneios tão típicos da idade, tremendo dos pés à cabeça. Curiosamente, depois daquela noite, nunca mais sentiu atração semelhante. Porém ainda hoje, passados tantos anos, é capaz de lembrar-se daquela que foi, de certa forma, sua primeira paixão arrebatadora. 


domingo, 10 de junho de 2012

A ÚLTIMA CONFISSÃO


Era Páscoa de 1988. Estava com minha mãe numa igreja cheia de almas sedentas de perdão. No confessionário, atalhei: _Sr. Padre, estou aqui apenas para atender a um pedido de minha mãe. Meus pecados são comuns, iguais aos de todo mundo, inclusive aos seus. Por isso, me desculpe, mas não irei contar nada da minha vida. Fique à vontade para me dar ou não a sua absolvição. Com todo respeito, isso não faz diferença para mim. Após alguns instantes de silêncio, o padre iniciou sua fala, pareceu-me um discurso padrão. Ao final, recomendou-me duas ave-marias e dois pai-nossos. Como na época ainda rezava, rezei. Ao terminar, minha mãe me perguntou se eu tinha falado alguma coisa diferente no confessionário. Não, por quê? Disse-me ela que quando saí de lá, o padre colocou a cabeça para fora para me olhar. Curioso, quis ver quem lhe fizera aquela insólita confissão, cuja absolvição, não sei se por dever de ofício, bondade ou medo, ele não negara.


terça-feira, 5 de junho de 2012

PARA AUGUSTO DOS ANJOS



                           Versos eternos
                               
                         Vês?, meu querido irmão.
                         Hoje foi o dia da tua morte
                         Estás entregue à própria sorte
                         Bem a sete palmos do chão!

                         Estás morto irremediavelmente.
                         Nenhum anjo se compadeceu
                         Nenhuma luz sequer apareceu
                         Para trazer-te à vida novamente.

                         Assim teu corpo, já sem vida,
                         Com o eterno pó fará aliança
                         E, fadado à paz esquecida,

                         Terás como derradeira lembrança
                         O riso infame da morte - essa bandida -
                         Triunfando sobre tua última esperança!

                                                              11/11/1997

 - modesta homenagem a Augusto dos Anjos (20/04/1884 - 12/11/1914), autor do inesquecível soneto "Versos íntimos".                               

terça-feira, 29 de maio de 2012

O HOMEM NO DIVÃ


A busca neurótica pela adequação do padrão comportamental de macho-bruto gera desajustes sociais e psicológicos. Homens, brutos ou não, são em regra angustiados por se sentirem compelidos a provar incessantemente sua masculinidade. Eis a sua recorrente reflexão: sou homem o bastante? E isso ganha realce quando analisamos duas fantasias típicas do imaginário masculino e seus possíveis conteúdos ocultos: sodomia, que bem pode ser o desejo disfarçado pela inversão, e o voyeurismo da relação sexual entre duas mulheres, que pode ser, por sua vez, uma projeção do próprio desejo homossexual. O fato é que há o desconforto do homem em relação ao imutável papel de macho-dominante, o que é sobretudo frustrante porque confinar qualquer indivíduo a um único padrão de comportamento é negar toda complexidade da condição humana.


Extraído do livro "O óbvio".

terça-feira, 22 de maio de 2012

A LEVEZA E O PESO DO SER


A leveza do ser é utópica. Atingi-la demandaria perder a noção do tempo, apagar lembranças, desfazer laços afetivos. Tudo para manter o coração leve, sem nenhuma inquietação, medo, alegria, prazer ou tristeza. Leveza reclama, portanto, não sofrer da angústia que é estar vivo. Ou por outra: para ter a leveza do ser seria preciso, antes, não ser. O contraponto dessa leveza é justamente o peso da existência. Viver é sempre uma experiência esmagadoramente pesada. Somos tão contraditórios e complexos quanto o mundo em que vivemos. Temos em nosso código genético as sensações do inferno e do paraíso. Somos alegres porque também somos tristes; felizes porque também somos infelizes; generosos porque também somos mesquinhos; e assim por diante. Não há como fugir desses antagonismos, não dá para separar uma coisa da outra. Não dá para ser leve sem ser pesado. Contradições, contradições... Não há sabedoria nem ilusão que nos redima delas.


Extraído do livro "O óbvio".

terça-feira, 15 de maio de 2012

SOB O SIGNO DA SOLIDÃO


São duas as solidões humanas: a emocional e a existencial. Enquanto a primeira é uma condição circunstancial, a segunda é um destino inevitável. Solidão emocional decorre da ausência de relacionamentos interpessoais afetivos ou da ineficácia dos mesmos, isto é, quando esses não atendem à sua finalidade psíquica, que é a troca de emoções. É por isso emocional e não física propriamente. Já solidão existencial é um estado natural, mas em regra visto com assombro porque mostra que, no fim das contas, estamos inapelavelmente sós no mundo. E isso realmente assusta. Em consequência, surgem crenças, ansiedades e fobias, que fazem com que a mente mantenha-se ininterruptamente ocupada para fugir dessa inexorável realidade. Contudo, paradoxalmente, a solidão existencial pode ser um alento, um porto seguro, pois é o único espaço onde reinamos absolutos e maravilhosamente sós.


Extraído de meu livro "O óbvio".

terça-feira, 8 de maio de 2012

NÃO QUERO MORRER HOJE

Não quero morrer hoje, nem nunca. Gosto de viver, sobretudo por mim mesmo. Digo isso porque minha existência, apesar de muito amada por quem me cerca, não é imprescindível, nem mesmo para meus filhos, hoje adolescentes. Muitos desejam que a morte venha somente depois dos filhos estarem devidamente encaminhados. Ocorre que a vida não oferece certeza nem estabilidade. Penso que o único encaminhamento que pais podem (e devem) proporcionar a seus filhos é o de uma boa educação. Ou, por outra: a necessidade da presença física dos pais se esgota muito cedo na vida dos filhos, sejam eles bem ou mal educados. Tal afirmação, porém, se contrapõe a dois comportamentos corriqueiros: tentar compensar materialmente lacunas emocionais e tentar eternizar a dependência filial como propósito único de vida. Como disse, não quero morrer hoje, mas, se morrer, penso já ter dado a meus filhos as ferramentas mentais e emocionais para que construam seu próprio caminho. Agora, se irão de fato usá-las isso já não dependerá de mim.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

COTAS DA HUMILHAÇÃO


Dívida social e desigualdade social seriam as justificativas para a existência das cotas raciais que garantem a negros e pardos parte das vagas das universidades públicas. Da pobreza fazem parte indistintamente brancos, negros, pardos, etc, logo as cotas não se justificam sob esse aspecto. Mas e a dívida social que os brancos têm com os negros? Realmente a escravidão é uma página nefasta da história, mas também irreparável. Isso porque tanto os que a promoveram quanto os que a sofreram já estão mortos há muito tempo. Penso que a forma mais digna de se honrar a memória dos antigos escravos seja justamente garantir a igualdade racial a seus descendentes. Eis o ponto aonde queria chegar. Racismo não é justamente decidir algo comum a todos pelo critério míope da cor da pele? O que seriam as cotas então, racismo do bem? Racismo é racismo, sempre. Esse sistema não é uma conquista, mas um retrocesso. E, bem analisando, é perverso justamente com quem se pretende beneficiar, porque lhe retira a possibilidade do mérito sem a humilhante caridade legal. 

terça-feira, 24 de abril de 2012

ALIANÇA


Foi um acidente de carro que matou sua mulher. Desesperou-se. Como viveria sem ela? Muito companheiros e dependentes um do outro, assim eram felizes, mesmo com as rusgas cotidianas. No velório viram que a morta ainda estava com a aliança de casamento. Alguém recomendou tirá-la. Olharam na sua direção, mas como ele, entorpecido de dor, não disse nem sim nem não, tiraram-na do dedo anelar esquerdo, onde esteve por quarenta anos. Quarenta anos, uma vida!, disse-lhe um homem cuja identidade lhe escapara por completo  no momento. Quando fecharam o caixão na sepultura, ele, indignado: eu não posso deixá-la aqui sozinha! O irmão se aproximou pegando em seu braço: ela já está em outro lugar, muito melhor do que a gente. Ele não respondeu nada, mas duvidou. Veio a noite e, deitado na cama ainda com a roupa do enterro, sentiu todo o peso da solidão. Resolveu sair. Depois de rodar a cidade, acabou indo ao cemitério. Deu um trocado ao vigia e entrou. Defronte ao jazigo da mulher, disse: amor, não consegui dormir sem você. Olha só, eu trouxe a sua aliança...

Do livro "As coisas que chamamos de nossas".

terça-feira, 17 de abril de 2012

VOCÊ É O QUE VOCÊ FAZ

Quem sou eu?, é a pergunta que se tem feito ao longo da história. Tão instigante quanto é a busca por sua resposta. A proposição de Shakespeare: "Ser ou não ser: eis a questão" dá perspectiva à dificuldade de ser o que se é. Na mesma linha, Nietzsche recomenda: "Torna-te quem tu és!", deixando implícita, também, a dificuldade que isso demanda. Como se vê, a resposta no plano filosófico/psicológico é sempre ampla e subjetiva. Mas para a sociedade, em especial para a lei, a resposta, ao contrário, deve ser restrita e objetiva. Isso porque sabiamente a lei regula a conduta humana a partir de seus atos e não da identidade de quem os pratica. Um pai de família, um padre, um comerciante, um prefeito, um militar, enfim qualquer pessoa que, por exemplo, mata outra será antes de tudo um homicida. Por essa razão a sociedade tem se debatido para extinguir ou ao menos restringir injustificáveis privilégios que a lei ainda concede anacronicamente em razão da pessoa. A subjetividade do ser é campo fértil para a filosofia e para a psicologia. Para a lei, contudo, a regra é simples e clara: você é o que você faz. 

segunda-feira, 9 de abril de 2012

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA


O amor que o povo norte-americano tem por seu país se materializa não apenas nos símbolos da pátria, mas também na tradição de garantir seus direitos e liberdades individuais. Lá, a democracia se manteve intacta ao longo da história justamente porque a liberdade é tida como um bem inegociável e irrenunciável. Ou seja, são cultuados sobretudo símbolos e direitos; não pessoas. Diferentemente, os povos latino-americanos, por sua ignorância, herança maior das colonizações espanhola e portuguesa, historicamente têm se deixado seduzir pelo culto da personalidade política. Não foram poucos os ditadores, os populistas, os "pais dos pobres", enfim, uma infinidade de figuras grotescas cuja vaidade e ganância sempre puseram em segundo plano o próprio país e, bem mais abaixo, os direitos e as liberdades individuais de seus cidadãos. Direitos e liberdades, aliás, que já foram muitas vezes covardemente aviltados, sempre com o apoio silencioso e alienado da maioria.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

APRENDER PARA ESQUECER

Professores pensam que ensinam; alunos pensam que aprendem. Para que o ensino seja mais efetivo e qualificado penso ser necessária uma reforma em seu conteúdo, tornando-o mais flexível, enxuto e pragmático. Sim, há disciplinas que devem ser ensinadas à exaustão, como língua portuguesa (e inglesa), história, filosofia, lógica e geografia, pois pensar bem, comunicar-se bem e situar-se no tempo e no espaço, mais que direito, é necessidade. Mas outras, como matemática, física, biologia, etc, deveriam limitar-se a conceitos básicos, justamente para fixar a sua compreensão. O aprofundamento dessas disciplinas seria facultado àqueles que demonstrassem pendor e interesse. Outra coisa: não é estranho o computador estar em todos os lugares menos na sala de aula? Lá, e apenas lá, a escrita manuscrita ainda reina absoluta. A propósito, por que não se ensina digitação na escola? Tudo muda o tempo todo (e cada vez mais rapidamente), mas esse modelo escolar ineficaz é o mesmo há mais de século. É aprender para esquecer.  

sábado, 31 de março de 2012

UMA HISTÓRIA DE PÁSCOA


Já havia algum tempo que meus filhos me perguntavam sobre cemitérios. Senti que falar já não bastava; eles, pequenos à época, queriam ver para entender. Era domingo de Páscoa e almoçávamos em Santa Felicidade. Disse-lhes então que mais tarde iríamos visitar um cemitério. Entusiasmados, como se fossem a um parque, fizeram insólito coro: cemitério! cemitério! Das outras mesas, quem ouviu, não deve ter entendido nada. Já no local prometido, eles olhavam tudo, perguntando isso e aquilo. Era bonito, todo gramado, sem sepulturas; só placas de bronze. Reparamos que sobre uma delas havia um ovo de chocolate. Era a lápide de uma criança, um menino. Comovido, tive vontade de chorar e, mais ainda, de abraçar meus filhos. Mas me segurei e disse a eles como o coelhinho era bom, tanto que lembrou até daquele menino morto, para sempre com oito anos. Estar vivo é mesmo um milagre. Disse isso também, mas dessa vez apenas para mim mesmo.  

terça-feira, 27 de março de 2012

DIALETO AFETIVO

Achava engraçado o jeito da minha mãe falar quando via seus parentes. Ela, professora por formação, deixava de lado o bom português e passava a falar um bom "caipirês". Não que seus parentes fossem caipiras; não eram. Mas esta era uma forma de todos lembrarem de um tempo, de pessoas e de coisas que não mais existiam. Assim, a conversa fluía mais solta, sincera e alegre. Não é novidade dizer que para saber quem somos é preciso antes saber quem fomos. Por isso a linguagem é um dos pilares da identidade humana, porque impregnada de códigos, tons e variantes que nos falam diretamente ao coração. Certa vez um amigo de meu irmão teve o filho adolescente morto num acidente. Apesar de ser um empresário inteligente e bem sucedido, ao ver meu irmão no velório disse emocionado: "Perdimo o Thiago, Ruy!" Não havia verbo nem conjugação que pudessem expressar dor maior.


domingo, 18 de março de 2012

POUPEM AS LIVRARIAS

Garimpo novidades numa livraria. Mas hoje me sinto angustiado, irritado. Por quê? Súbito me vem a resposta: a música ambiente. Alta demais, barulhenta demais, agitada demais, típica de loja de roupa. A propósito, desconfio dos que dizem ser a música alta um estimulante para o consumo; em mim o efeito é justamente inverso. Mas, volto onde estava. Como ler com tanto barulho? Falo com uma atendente. Argumento que o ambiente requer introspecção e calmaria, que aquela música parece dizer: vá embora! vá embora! Ela, sorrindo, agradece a sugestão e retorna para seus afazeres. Vencido, obedeço ao imaginário comando musical e vou embora. Já fora, penso se esse inferno sonoro se tornará oníssono em todo tipo de comércio. Por favor, poupem as livrarias! Mas logo meu humor muda, porque noutra loja, bem mais silenciosa que a primeira, vejo-me placidamente procurando e encontrando um bom livro.

quinta-feira, 15 de março de 2012

DESEJANDO A VIDA ALHEIA

O cenário era mesmo perfeito. Casados há um ano, estávamos em Gramado/RS. Fazia frio e a noite, que caía suave, trazia uma densa neblina, conferindo a tudo encantamento e magia. Próximos ao calor da lareira, permanecíamos sentados num sofá no lobby do hotel. Nisso estacionou um automóvel diante da porta. Dele saltaram um homem, uma mulher e duas crianças. Fiel à minha obsessão, passei a observá-los. Aquela imagem me causou admiração e, confesso, inveja. Isso porque pensei em como seria bom ter filhos e viajar com eles assim para lugares distantes. Foi quando o homem, que agora preenchia uma ficha no balcão, subitamente fixou seu olhar em nossa direção. Então por um breve instante nossos olhares se cruzaram. Sem jeito, disfarcei o melhor que pude. Naquela hora achei que fosse um olhar de censura, mas hoje penso que não. Na verdade, enquanto desejava para mim aquela agitada viagem familiar a quatro, ele, muito provavelmente, estava desejando a calmaria e o romantismo da minha viagem a dois...

domingo, 11 de março de 2012

SANGUE NO ASFALTO

Antes não tivesse visto, mas vi. O homem velho desolado na calçada porque sua cachorrinha, cuja guia ele deixara mais frouxa do que deveria, acabara de ser atropelada e morta. Tal como eu, uma mulher, saída da lanchonete em frente, aproximou-se. Oferecemos ajuda, embora pouco pudesse ser feito. Ela colocou a cachorrinha numa sacola. O velho permanecia na mesma posição, tomado pela perplexidade e, principalmente, pela culpa. Ela era minha companheira há nove anos. Eu me distraí... Disse sem tirar o olho do asfalto manchado de sangue. Quis saber onde morava. Ele apontou numa direção, mas estava indo ver a filha, veterinária, que logo apareceu. Onde está a Flora?, perguntou assustada. O homem apenas mostrou a sacola.  Então se abraçaram e choraram, de um modo tão comovente, intenso e sofrido quanto um choro pode ser. 

domingo, 4 de março de 2012

CICLISTAS RAIVOSOS

Na manhã desse domingo, caminhei numa ciclovia. Mas foram tantas caras feias, resmungos e  buzinadas dos ciclistas que acabei tomando outro rumo. Houve até um grotesco assovio, daqueles para espantar cachorro bravo, que ignorou por completo a minha condição humana. Todos incomodados por este lento e inconveniente pedestre estar ocupando o espaço exclusivo deles. Outro dia vi no centro uma "passeata" de ciclistas. Gritavam palavras de ordem, enquanto um deles, aparentemente o líder, fazia barulho com uma buzina de caminhão, gesticulando para os carros pararem mesmo no sinal verde. Nessa semana uma ciclista morreu na Avenida Paulista, segundo testemunhas, enquanto discutia com um motorista de ônibus. Aliás, a foto dela no asfalto ao lado de sua bike é chocante e reveladora ao mesmo tempo. Isso porque no asfalto, onde jazia, lê-se em letras maiúsculas: ÔNIBUS. Não sei realmente quem tem razão nessa história. Afinal, cada qual tem a sua. Mas sei que vejo em muitos desses ciclistas modernos, sustentáveis e ecológicos, a mesma intolerância dos motoristas mais violentos. 

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

A SIMPLIFICAÇÃO DE BUDA

Segundo Buda, são quatro as nobres verdades: viver é sofrimento (primeira), ignorância e desejo dão causa ao sofrimento (segunda), mas ambos podem ser extirpados (terceira) através do Nobre Caminho dos Oito Passos (quarta). Dizer que viver é sofrimento é, ao mesmo tempo, uma simplificação e uma negação da complexidade da vida. Assim como também o é dizer que a ignorância e o desejo sempre dão causa a esse sofrimento (a consciência da morte, por exemplo, traz angústia e o desejo nos distrai dessa verdade inexorável). Aliás, a ignorância sequer pode ser de todo extirpada pois, além da impossibilidade de se obter a consciência plena, nosso consciente está atrelado ao inconsciente e, ambos, percebem o mundo de modo distintos. Também os desejos não podem ser extirpados, porque nossa sobrevivência mental está justamente baseada no ciclo: desejo, realização (ou não-realização), frustração, novo desejo. Ser humano é tentar conciliar contraditórios: impulsos instintivos com anseios morais, consciência com inconsciência, e assim por diante. Infelizmente não há simplificação possível: somos complicados por natureza.

(extraído do livro "O óbvio", de minha autoria)

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

LEMBRAR NÃO É VIVER

"Quando chegar o dia em que você viver apenas de lembranças, de que lembranças você quer viver?" Pergunta o narrador do comercial de uma motocicleta. A frase, ainda que bem construída, revela uma ilusão tão comum quanto equivocada. Não, lembrar não é viver de novo; lembrar é lembrar, apenas. Isso porque um passado cheio de boas lembranças não supre as ausências e lacunas do presente. Ao contrário, mete-nos numa cruel e injusta comparação. Primeiro, porque é humano idealizar o próprio passado. E segundo, porque também é humano não se satisfazer com o próprio presente. Gostaria de dizer que essa combinação molda nosso futuro. Mas sou realista demais para isso. O futuro é uma expectativa de vida que não depende da nossa simples vontade. Aliás, a mensagem de fundo daquele comercial é perversa: não há presente nem futuro na velhice; só passado. Senhor redator, tanto faz olhar para trás ou para frente. O passado é tão ilusório quanto o futuro. Ambos são negações da realidade de que só existe um tempo, o presente. Isso vale na mesma medida para jovens e para velhos; para os que têm do que lembrar e para os que não têm.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

O MENINO DE MADEIRA

Bastou que na ecografia o médico rompesse seu silêncio para que a tensão se instalasse. E foi assim durante toda a gravidez. Exames, dúvidas e medo, muito medo. Veio o parto, depois duas cirurgias. Mais exames. Depois, enfim, o alívio da normalidade, embora supervisionada e controlada. Gabriel, meu filho, desde cedo se mostrou tão corajoso quanto lindo. Já crescido, ele foi mordido por um cão grande no supercílio, logo acima do olho direito. No hospital deixou que a médica fizesse seu trabalho sem mover um músculo sequer. Ela mesma, ao final, chegou a perguntar se ele não tinha adormecido. Chuang Tzu, filósofo chinês que viveu no século II a.C., conta a história do príncipe que contratou um treinador para seu galo de briga. Mas só depois de esperar o tempo certo ouviu-o dizer: "Agora ele está pronto. Quando outra ave grasna seu olho nem pisca. Fica imóvel como um galo de madeira. É um brigador amadurecido. Outras aves olharão para ele de relance e fugirão."


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

A VIGÍLIA

O silêncio do café da manhã foi quebrado por um estrondo. Parecia que um dos vidros da casa tinha sido atingido por algo. Olhamos para baixo e vimos na calçada dois pequenos pássaros. Um deles, em pé, observava o outro que jazia, inerte. Estava esclarecido o fato: uma manobra de voo mal sucedida fora fatal. Mas por que se mantinha tão próximo? Por que não voava? Teria se ferido também? Não, ao menos não fisicamente. Percebemos então que, em vão, esperava ele uma reação de seu companheiro (ou seria companheira?). Recusava-se a seguir seu caminho. E assim permaneceu, tão silencioso quanto incrédulo. Era como se para ele o tempo tivesse parado, entrado  num estado de suspensão, numa realidade paralela. Minha mãe contou-me que aquela cena se estendeu por mais de uma hora. E só não foi mais longa porque ela, tomada pela angústia, não suportou mais ser mera expectadora. Aproximando-se, falou ao pássaro num sussurro que nada mais poderia ser ser feito, que ele deveria ir embora porque a morte, infelizmente, é sempre irremediável. O pássaro, parecendo entender, alçou seu voo solo. 


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

MEU APÓSTOLO PREFERIDO

Simão, mais conhecido como Pedro, era talvez o apóstolo preferido de Cristo. O meu, com certeza. Inseguro, sempre desconfiou de seu valor e de seu caráter. Humano, quis ser poderoso como seu Mestre ao tentar caminhar sobre as águas. Mas, como tinha pouca fé, duvidou e acabou quase afogado no mar. Humano, desconfiou de sua capacidade quando Jesus lhe disse que sobre ele edificaria a sua igreja. E, finalmente, escondido por entre as sombras da noite, negou seu Messias três vezes antes do galo cantar, com medo de ser igualmente preso e torturado. Humano, sem dúvida, comoventemente humano. Mais humano, porém, do que viver é saber morrer. E Pedro morreu crucificado. Mas de um modo diferente. Isso porque revelou-se naquele grave momento toda sua simplicidade, força e coragem. Ele pediu que sua cruz fosse fincada de cabeça para baixo, porque não se julgava digno de morrer da mesma forma que seu grande amigo Jesus de Nazaré.


quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

PÃO COM BANANA

Trabalhavam juntos. O pai, marceneiro experiente, calejado pela faina e pela vida. O filho, jovem e ávido por aprender o ofício familiar. Fabricavam e instalavam móveis. Na hora do almoço, sentavam em qualquer canto para comer. Em regra, duas marmitas de arroz, feijão e carne. Um dia, porém, a refeição restringiu-se a sanduíches. Na verdade, dois humildes pães com banana. O filho logo comeu a sua parte. Já o pai sequer tocou na comida. Estranhando, perguntou se o pai não estava com fome. Não, hoje não estou. Posso comer o seu? Sim, pode. Então, tal como antes, ele comeu o segundo sanduíche. O jovem não tinha maturidade nem sensibilidade para perceber que o pai estava, sim, com fome e que, apesar disso, preferiu ver o filho bem alimentado. Comovido com essa lembrança, o filho, hoje homem feito, ainda sente remorso. É quando, inconformado e arrependido, pergunta-se por que não se conteve, por que comeu aquele pão com banana de seu pai querido.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

DEUS ME LIVRE DA VIDA ETERNA

Gosto tanto desta vida que por vezes sinto saudades antes mesmo dela acabar. Mas o que me restará depois, a morte eterna ou a vida eterna? Não sei o que será pior. Diz o senso comum que a vida eterna é uma vida espiritual, da alma, sem as frustrações, ansiedades ou angústias tão típicas da vida mortal. Contudo, somos forjados mais por lacunas do que por plenitude. Nada mais humano do que a capacidade de superação. Então não consigo imaginar o tédio absoluto de uma vida irremediavelmente plena. Sentirei saudades de tantas coisas, inclusive das maravilhosamente banais: o cheiro das manhãs, a brisa do mar, o pão com manteiga, um café quentinho, um livro envolvente, uma partida de futebol. Que vida etérea será essa sem as sensações puramente físicas que tanto me fascinam? Vida sem afago, abraço e beijo para mim não é vida. O que será de mim, se tudo o que me define ficar para nunca mais? Como viverei eternamente na linearidade, sem o balançar da gangorra das emoções e sem o sentido de preciosidade que tanto a morte me dá?

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O ADEUS DE MAX

O trajeto de casa até a clínica nunca foi tão longo. No Fiat 147, além de mim ao volante, estavam minha mãe e Max, acomodados no assento de trás. A sentença de morte de meu pastor alemão havia sido dada pela veterinária no dia anterior. Sua falência hepática era tão evidente quanto irreversível. Lembrava de tantos momentos vividos durante os últimos doze anos. Eu era um jovem adulto, mas chorava feito menino, tão menino quando era no dia em que ele chegou  nos braços de meu pai. Na clínica tudo já estava preparado. Fiz questão de acompanhá-lo até o fim. Era o mínimo que poderia fazer por quem sempre me fora fiel e companheiro. Queria ampará-lo até que sua vida se esvaísse por completo. Lembrei-me de Karenin, a cadelinha de "A insustentável leveza do ser", sacrificada com semelhante acolhimento. E assim aconteceu. De repente seu doce olhar perdeu o brilho e o silêncio daquela sala fria se fez ensurdecedor. Passados tantos anos muito dele se perdeu em minha memória, mas tenho uma foto sua no porta-retrato da cômoda de meu quarto. Max  está deitado, seu semblante é tranquilo e confiante. Está tão feliz que parece até sorrir.



sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

CRISE NA FAMÍLIA DE JESUS

Uma passagem bíblica que sempre me intrigou é a intitulada "A família de Jesus". A cena é conhecida: Cristo falava a uma multidão quando alguém veio avisá-lo que sua mãe e seus irmãos estavam do lado de fora e queriam vê-lo. Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? Vocês que me seguem são a minha mãe e meus irmãos. Essa foi a sua resposta. Nenhuma palavra de carinho ou acolhimento. Não há no texto notícia de que Jesus os tenha recebido. A interpretação nos sugere justamente o contrário. Não julgo o fato em si porque problema de família todos temos. Porém sou tentado a  imaginar a sequência dos acontecimentos, uma cena tão triste quanto cômica. Maria, atônita por seu primogênito não querer vê-la, ensaia um choro, mas não  sem ouvir a censura ciumenta dos filhos: Está vendo, mãe? Ele não quer mais saber da gente. Nós bem que avisamos, mas a senhora insistiu... Perdemos a viagem e ainda passamos essa vergonha. Agora é pegar a estrada porque a viagem é longa. Bem fez o pai de ficar em casa. 


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

CORRENDO DA CHUVA

Meu primo e eu caminhávamos distraídos pelas areias da Praia Alegre. Súbito, percebemos uma forte chuva se aproximando pelas nossas costas. Como bons piás que éramos, desafiamos a tempestade, começando a correr dela. Lépidos, corríamos como loucos com aquele aguaceiro todo quase lambendo nossos calcanhares. O som e a visão dos pingos se aproximando, mas sem nos alcançar, causava-nos um prazer inebriante. Por fim, ganhamos a corrida. Afinal a chuva só nos alcançou porque saímos da areia, quando tomamos o rumo de casa. Rimos muito, extasiados com aquela inusitada brincadeira de pega-pega com a natureza. Hoje vejo as lições daquele distante fim de tarde dos anos 1970: uma, não adianta fugir da chuva, pois cedo ou tarde ela chega; outra, é possível fazer o próprio caminho antes disso. E mais esta, talvez a definitiva: a vida, sempre breve e intensa, não é mais que uma chuva de verão.