terça-feira, 28 de agosto de 2012

CÁLICE



Quase não acreditaram quando viram o mestre e seus seguidores entrando em sua casa para o jantar. O marido nem se importou de ficar sem lugar na mesa porque, no fundo, só pensava fazer inveja aos vizinhos. A mulher ficou na cozinha, mais preocupada com a louça cara que iriam usar. Durante a refeição não ouviam direito as palavras do líder que, sentado bem ao centro, falava de um modo muito plácido.  Mas ouviram quando ele ergueu diante dos olhos o cálice que estava à sua frente e disse: tomai, este é o meu sangue!O marido se assustou; não podia ver sangue. A mulher só pensou se aquilo mancharia o cálice. Em seguida, ele anunciou que um dos seus iria traí-lo. Todos duvidaram, alvoroçados. O casal, ainda na cozinha, tentou adivinhar. Pra mim é esse que tá no lado direito dele, todo solícito, disse o marido, os bonzinhos são os piores. A mulher preferiu apostar no discípulo mais calado, intuição feminina.Tarde da noite, foram-se todos, alimentados e agradecidos. A mulher, não se contendo, correu  examinar o cálice usado pelo mestre. Ficou aliviada quando viu que nele não havia sangue, mas apenas vinho.


(Extraído do livro "As coisas que chamo de nossas")

sábado, 18 de agosto de 2012

O BEIJO LÉSBICO


Vai ser difícil, eu sei. Mas tente abstrair a informação do título. Um casal qualquer, num shopping qualquer. A intimidade no olhar não deixa dúvida: virá um beijo. E vem. Nada efusivo, só um beijo. Surge uma agente de segurança. Ela diz algo e se afasta. Aproximo-me e pergunto o que foi dito. Que é proibido beijar naquele local. Dirijo-me ao SAC para manifestar meu repúdio. Um improvável retorno me é prometido. Lembro que minutos antes beijei minha mulher da mesma forma sem represália alguma. Logo, vejo que a intervenção se deu apenas por ser aquele um casal de moças. Como testemunha, vivi emoções tão intensas quanto distintas. Primeiro a curiosidade, era a primeira vez que via meninas namorando. Da curiosidade fui para a satisfação, por constatar ali a ternura de um casal apaixonado. Então veio a surpresa, pela interrupção abrupta da cena, transformada em indignação, porque discriminação é crime. Por fim, só ficou a tristeza por ver um casal censurado apenas por expressar amor.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

FAZENDO AS PAZES


Um amigo fez as pazes com seu pai num templo budista: perdoou e sentiu-se perdoado. Bonito, sem dúvida. Mas o fato de o pai ter morrido muitos anos antes disso foi fundamental para o desfecho pacífico da história. Relacionamentos são complicados, uns mais outros menos. Isso porque temos todos carências, vontades e necessidades não atendidas por quem amamos. Aliás, é fácil identificá-las em si próprio. Difícil é identificar essas mesmas carências, vontades e necessidades no outro. Por essa razão, relacionamentos só funcionam quando bilaterais e recíprocos, em intenções, sentimentos e atitudes. Caso contrário, há sempre muita dor, frustração e mágoa. Só mesmo a morte para resolver um relacionamento que a vida não deu conta de fazê-lo. Na verdade, nesse caso, não se resolve: o que se faz são as pazes com a própria consciência.

sábado, 4 de agosto de 2012

A QUESTÃO DA CARNE


Escravidão, crueldade e morte: esse é o destino diário de uma infinidade de animais para que a humanidade se alimente. É triste isso, concordo. Mas não foi o homem o primeiro animal a se alimentar da carne de outro, muito menos o único. A natureza tem regras próprias de sobrevivência: carnívoros comem carne; herbívoros, plantas; e onívoros, as duas coisas. Nós, onívoros, podemos sobreviver sem consumir proteína animal, embora seja ela nosso alimento mais básico e completo. Mas volto à questão moral. Toda essa matança que promovemos em troca da carne é mesmo injusta, mas ela é natural. Apenas sistematizamos e organizamos o que já ocorre sem o menor constrangimento no ambiente selvagem. O mundo não é um lugar justo. Justiça, aliás, é um conceito exclusivamente humano. Quando aceitaremos que a natureza está pouco se lixando para o que o homem pensa?