sábado, 31 de março de 2012

UMA HISTÓRIA DE PÁSCOA


Já havia algum tempo que meus filhos me perguntavam sobre cemitérios. Senti que falar já não bastava; eles, pequenos à época, queriam ver para entender. Era domingo de Páscoa e almoçávamos em Santa Felicidade. Disse-lhes então que mais tarde iríamos visitar um cemitério. Entusiasmados, como se fossem a um parque, fizeram insólito coro: cemitério! cemitério! Das outras mesas, quem ouviu, não deve ter entendido nada. Já no local prometido, eles olhavam tudo, perguntando isso e aquilo. Era bonito, todo gramado, sem sepulturas; só placas de bronze. Reparamos que sobre uma delas havia um ovo de chocolate. Era a lápide de uma criança, um menino. Comovido, tive vontade de chorar e, mais ainda, de abraçar meus filhos. Mas me segurei e disse a eles como o coelhinho era bom, tanto que lembrou até daquele menino morto, para sempre com oito anos. Estar vivo é mesmo um milagre. Disse isso também, mas dessa vez apenas para mim mesmo.  

terça-feira, 27 de março de 2012

DIALETO AFETIVO

Achava engraçado o jeito da minha mãe falar quando via seus parentes. Ela, professora por formação, deixava de lado o bom português e passava a falar um bom "caipirês". Não que seus parentes fossem caipiras; não eram. Mas esta era uma forma de todos lembrarem de um tempo, de pessoas e de coisas que não mais existiam. Assim, a conversa fluía mais solta, sincera e alegre. Não é novidade dizer que para saber quem somos é preciso antes saber quem fomos. Por isso a linguagem é um dos pilares da identidade humana, porque impregnada de códigos, tons e variantes que nos falam diretamente ao coração. Certa vez um amigo de meu irmão teve o filho adolescente morto num acidente. Apesar de ser um empresário inteligente e bem sucedido, ao ver meu irmão no velório disse emocionado: "Perdimo o Thiago, Ruy!" Não havia verbo nem conjugação que pudessem expressar dor maior.


domingo, 18 de março de 2012

POUPEM AS LIVRARIAS

Garimpo novidades numa livraria. Mas hoje me sinto angustiado, irritado. Por quê? Súbito me vem a resposta: a música ambiente. Alta demais, barulhenta demais, agitada demais, típica de loja de roupa. A propósito, desconfio dos que dizem ser a música alta um estimulante para o consumo; em mim o efeito é justamente inverso. Mas, volto onde estava. Como ler com tanto barulho? Falo com uma atendente. Argumento que o ambiente requer introspecção e calmaria, que aquela música parece dizer: vá embora! vá embora! Ela, sorrindo, agradece a sugestão e retorna para seus afazeres. Vencido, obedeço ao imaginário comando musical e vou embora. Já fora, penso se esse inferno sonoro se tornará oníssono em todo tipo de comércio. Por favor, poupem as livrarias! Mas logo meu humor muda, porque noutra loja, bem mais silenciosa que a primeira, vejo-me placidamente procurando e encontrando um bom livro.

quinta-feira, 15 de março de 2012

DESEJANDO A VIDA ALHEIA

O cenário era mesmo perfeito. Casados há um ano, estávamos em Gramado/RS. Fazia frio e a noite, que caía suave, trazia uma densa neblina, conferindo a tudo encantamento e magia. Próximos ao calor da lareira, permanecíamos sentados num sofá no lobby do hotel. Nisso estacionou um automóvel diante da porta. Dele saltaram um homem, uma mulher e duas crianças. Fiel à minha obsessão, passei a observá-los. Aquela imagem me causou admiração e, confesso, inveja. Isso porque pensei em como seria bom ter filhos e viajar com eles assim para lugares distantes. Foi quando o homem, que agora preenchia uma ficha no balcão, subitamente fixou seu olhar em nossa direção. Então por um breve instante nossos olhares se cruzaram. Sem jeito, disfarcei o melhor que pude. Naquela hora achei que fosse um olhar de censura, mas hoje penso que não. Na verdade, enquanto desejava para mim aquela agitada viagem familiar a quatro, ele, muito provavelmente, estava desejando a calmaria e o romantismo da minha viagem a dois...

domingo, 11 de março de 2012

SANGUE NO ASFALTO

Antes não tivesse visto, mas vi. O homem velho desolado na calçada porque sua cachorrinha, cuja guia ele deixara mais frouxa do que deveria, acabara de ser atropelada e morta. Tal como eu, uma mulher, saída da lanchonete em frente, aproximou-se. Oferecemos ajuda, embora pouco pudesse ser feito. Ela colocou a cachorrinha numa sacola. O velho permanecia na mesma posição, tomado pela perplexidade e, principalmente, pela culpa. Ela era minha companheira há nove anos. Eu me distraí... Disse sem tirar o olho do asfalto manchado de sangue. Quis saber onde morava. Ele apontou numa direção, mas estava indo ver a filha, veterinária, que logo apareceu. Onde está a Flora?, perguntou assustada. O homem apenas mostrou a sacola.  Então se abraçaram e choraram, de um modo tão comovente, intenso e sofrido quanto um choro pode ser. 

domingo, 4 de março de 2012

CICLISTAS RAIVOSOS

Na manhã desse domingo, caminhei numa ciclovia. Mas foram tantas caras feias, resmungos e  buzinadas dos ciclistas que acabei tomando outro rumo. Houve até um grotesco assovio, daqueles para espantar cachorro bravo, que ignorou por completo a minha condição humana. Todos incomodados por este lento e inconveniente pedestre estar ocupando o espaço exclusivo deles. Outro dia vi no centro uma "passeata" de ciclistas. Gritavam palavras de ordem, enquanto um deles, aparentemente o líder, fazia barulho com uma buzina de caminhão, gesticulando para os carros pararem mesmo no sinal verde. Nessa semana uma ciclista morreu na Avenida Paulista, segundo testemunhas, enquanto discutia com um motorista de ônibus. Aliás, a foto dela no asfalto ao lado de sua bike é chocante e reveladora ao mesmo tempo. Isso porque no asfalto, onde jazia, lê-se em letras maiúsculas: ÔNIBUS. Não sei realmente quem tem razão nessa história. Afinal, cada qual tem a sua. Mas sei que vejo em muitos desses ciclistas modernos, sustentáveis e ecológicos, a mesma intolerância dos motoristas mais violentos.