segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

DESENHO










Era uma familia feminina. Bisavó, avó, mãe e filha. Tinham uma vida normal, apesar da criança possuir um distúrbio genético, que tornava baixa sua imunidade, deficitária sua coordenação motora e capacidade mental, e, ainda, com tendência à obesidade mórbida. Mas não era uma criança triste, justamente ao contrário. Era segura do espaço que ocupava na família. Seu mundo era feito de bonecas, princesas e de bichinhos digitais japoneses, que via na televisão. Tinha, também por conta da doença, maneirismos que lhe davam a sensação de segurança, inclusive um muito insólito: guardar embalagens de macarrão instantâneo. A bisavó se dava muito bem com a menina, mas por ser muito velha um dia morreu. A menina não chorou, porém ficou claramente sentida. Ralhou com a mãe e com a avó, expressando toda a simplicidade com que via a vida: por que vocês levaram a Bisa para o hospital? Se não tivessem levado, ela ainda tava aqui com a gente.Um ano já havia passado quando ela chegou radiante em casa com uma folha de papel nas mãos. Disse que a professora tinha pedido para cada um desenhar a sua família. No desenho, além dela, com seu vestido cor-de-rosa predileto, via-se a mãe, a avó e a bisavó. As quatro sorridentes e de mãos eternamente dadas.

 
Extraído de meu livro "As coisas que chamamos de nossas", conto dedicado à memória de Isabela de Jesus (23/06/1998 - 25/06/2008).

 

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

COMER, COMER, COMER



Escrevo num hotel onde há essa loucura gastronômica chamada de buffet. Impressiono-me com que volúpia hóspedes montam seus pratos, quase sempre ornamentais, olímpicos e homéricos.  Comem como se toda refeição fosse a última. Não dá para atribuir essa insaciabilidade à nossa memória genética e seus registros de um passado de penúrias alimentares. A intensidade é uma marca humana. Nossa consciência da morte é  sutil mas latente. Por isso a angústia que ela causa nos move a buscar tudo ao mesmo tempo. Aproveitar a vida seria a justificativa. Mas que vida mais vazia é essa que necessita ser preenchida a todo instante? Volto à morte (não há como falar da vida sem falar da morte). Se morte representa  ausência, vazio, silêncio, então vida seria presença, plenitude e barulho. Sim e não. A contradição da vida é quanto mais vivemos mais próximos da morte ficamos. Comer em excesso pode dar até uma sensação breve de preenchimento, como toda ilusão, mas acaba sendo apenas  mais um modo de abreviar a própria vida. 



terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A MINHA CARTINHA

Querido Papai Noel, é a primeira vez que lhe escrevo. Nunca fui um pedidor, nem mesmo quando ainda acreditava em Deus. Então não sei muito bem o que dizer e nem como. Pedir sempre me pareceu um gesto egoísta. Mas não escrevo esta para criticar quem pede. Pedir faz bem para as emoções, ao menos é o que dizem. Se fosse pedir algo, pediria coisas impossíveis ou improváveis. Que a vida da gente fosse sempre saudável, sem doenças, vírus e bactérias, que chegássemos aos oitenta, noventa anos sem sustos ou sofrimentos físicos. Também gostaria de voltar a me relacionar com meu pai. Nada além do banal, do normal. Mas conflitos também são banais e normais. É estranho ter um pai que opta por não conviver com você. Ainda que ele tenha suas razões e convicções, todos as temos, é sempre um desperdício, um triste efeito colateral da vida. Mas no Natal não se deve ficar triste. Suas cores e sons enchem os corações de alegria e encantamento. Sem dúvida o mundo seria mais triste sem ele. Então, Papai Noel, peço apenas um Natal feliz, com todos que amo bem próximos e saudáveis, inclusive... meu pai.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

VELHINHOS INFRATORES

Fiquei ouvindo rádio no carro no estacionamento do supermercado, já que minha mulher falou que a lista de compras era mesmo pequena. Pois bem, passei a observar o comportamento da turma da terceira idade em relação às suas vagas preferenciais. Em trinta minutos o saldo foi este: uma única credencial utilizada, e o restante, quatro, sem credencial. Houve também um carro com adesivo de cadeirante parado na vaga de deficiente cuja motorista era uma senhorinha lépida e faceira, só que sem deficiência alguma. Isso demonstra que nossa frouxidão com pequenas regras é disseminada em todas as faixas etárias. Costumo ouvir justamente dos mais velhos que os jovens não têm educação, que vivemos o fim dos tempos etc. Essa queixa, recorrente ao longo dos séculos, é tola porque quem a diz se esquece que o mundo em que se vive é herança das gerações passadas. Herda-se inclusive a falta de educação, pois para os tolos a idade só traz mesmo alguma decrepitude, cabelos brancos e o habitual  ressentimento com os mais jovens.