quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

PÃO COM BANANA

Trabalhavam juntos. O pai, marceneiro experiente, calejado pela faina e pela vida. O filho, jovem e ávido por aprender o ofício familiar. Fabricavam e instalavam móveis. Na hora do almoço, sentavam em qualquer canto para comer. Em regra, duas marmitas de arroz, feijão e carne. Um dia, porém, a refeição restringiu-se a sanduíches. Na verdade, dois humildes pães com banana. O filho logo comeu a sua parte. Já o pai sequer tocou na comida. Estranhando, perguntou se o pai não estava com fome. Não, hoje não estou. Posso comer o seu? Sim, pode. Então, tal como antes, ele comeu o segundo sanduíche. O jovem não tinha maturidade nem sensibilidade para perceber que o pai estava, sim, com fome e que, apesar disso, preferiu ver o filho bem alimentado. Comovido com essa lembrança, o filho, hoje homem feito, ainda sente remorso. É quando, inconformado e arrependido, pergunta-se por que não se conteve, por que comeu aquele pão com banana de seu pai querido.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

DEUS ME LIVRE DA VIDA ETERNA

Gosto tanto desta vida que por vezes sinto saudades antes mesmo dela acabar. Mas o que me restará depois, a morte eterna ou a vida eterna? Não sei o que será pior. Diz o senso comum que a vida eterna é uma vida espiritual, da alma, sem as frustrações, ansiedades ou angústias tão típicas da vida mortal. Contudo, somos forjados mais por lacunas do que por plenitude. Nada mais humano do que a capacidade de superação. Então não consigo imaginar o tédio absoluto de uma vida irremediavelmente plena. Sentirei saudades de tantas coisas, inclusive das maravilhosamente banais: o cheiro das manhãs, a brisa do mar, o pão com manteiga, um café quentinho, um livro envolvente, uma partida de futebol. Que vida etérea será essa sem as sensações puramente físicas que tanto me fascinam? Vida sem afago, abraço e beijo para mim não é vida. O que será de mim, se tudo o que me define ficar para nunca mais? Como viverei eternamente na linearidade, sem o balançar da gangorra das emoções e sem o sentido de preciosidade que tanto a morte me dá?

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O ADEUS DE MAX

O trajeto de casa até a clínica nunca foi tão longo. No Fiat 147, além de mim ao volante, estavam minha mãe e Max, acomodados no assento de trás. A sentença de morte de meu pastor alemão havia sido dada pela veterinária no dia anterior. Sua falência hepática era tão evidente quanto irreversível. Lembrava de tantos momentos vividos durante os últimos doze anos. Eu era um jovem adulto, mas chorava feito menino, tão menino quando era no dia em que ele chegou  nos braços de meu pai. Na clínica tudo já estava preparado. Fiz questão de acompanhá-lo até o fim. Era o mínimo que poderia fazer por quem sempre me fora fiel e companheiro. Queria ampará-lo até que sua vida se esvaísse por completo. Lembrei-me de Karenin, a cadelinha de "A insustentável leveza do ser", sacrificada com semelhante acolhimento. E assim aconteceu. De repente seu doce olhar perdeu o brilho e o silêncio daquela sala fria se fez ensurdecedor. Passados tantos anos muito dele se perdeu em minha memória, mas tenho uma foto sua no porta-retrato da cômoda de meu quarto. Max  está deitado, seu semblante é tranquilo e confiante. Está tão feliz que parece até sorrir.



sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

CRISE NA FAMÍLIA DE JESUS

Uma passagem bíblica que sempre me intrigou é a intitulada "A família de Jesus". A cena é conhecida: Cristo falava a uma multidão quando alguém veio avisá-lo que sua mãe e seus irmãos estavam do lado de fora e queriam vê-lo. Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? Vocês que me seguem são a minha mãe e meus irmãos. Essa foi a sua resposta. Nenhuma palavra de carinho ou acolhimento. Não há no texto notícia de que Jesus os tenha recebido. A interpretação nos sugere justamente o contrário. Não julgo o fato em si porque problema de família todos temos. Porém sou tentado a  imaginar a sequência dos acontecimentos, uma cena tão triste quanto cômica. Maria, atônita por seu primogênito não querer vê-la, ensaia um choro, mas não  sem ouvir a censura ciumenta dos filhos: Está vendo, mãe? Ele não quer mais saber da gente. Nós bem que avisamos, mas a senhora insistiu... Perdemos a viagem e ainda passamos essa vergonha. Agora é pegar a estrada porque a viagem é longa. Bem fez o pai de ficar em casa. 


segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

CORRENDO DA CHUVA

Meu primo e eu caminhávamos distraídos pelas areias da Praia Alegre. Súbito, percebemos uma forte chuva se aproximando pelas nossas costas. Como bons piás que éramos, desafiamos a tempestade, começando a correr dela. Lépidos, corríamos como loucos com aquele aguaceiro todo quase lambendo nossos calcanhares. O som e a visão dos pingos se aproximando, mas sem nos alcançar, causava-nos um prazer inebriante. Por fim, ganhamos a corrida. Afinal a chuva só nos alcançou porque saímos da areia, quando tomamos o rumo de casa. Rimos muito, extasiados com aquela inusitada brincadeira de pega-pega com a natureza. Hoje vejo as lições daquele distante fim de tarde dos anos 1970: uma, não adianta fugir da chuva, pois cedo ou tarde ela chega; outra, é possível fazer o próprio caminho antes disso. E mais esta, talvez a definitiva: a vida, sempre breve e intensa, não é mais que uma chuva de verão.