segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

DESENHO










Era uma familia feminina. Bisavó, avó, mãe e filha. Tinham uma vida normal, apesar da criança possuir um distúrbio genético, que tornava baixa sua imunidade, deficitária sua coordenação motora e capacidade mental, e, ainda, com tendência à obesidade mórbida. Mas não era uma criança triste, justamente ao contrário. Era segura do espaço que ocupava na família. Seu mundo era feito de bonecas, princesas e de bichinhos digitais japoneses, que via na televisão. Tinha, também por conta da doença, maneirismos que lhe davam a sensação de segurança, inclusive um muito insólito: guardar embalagens de macarrão instantâneo. A bisavó se dava muito bem com a menina, mas por ser muito velha um dia morreu. A menina não chorou, porém ficou claramente sentida. Ralhou com a mãe e com a avó, expressando toda a simplicidade com que via a vida: por que vocês levaram a Bisa para o hospital? Se não tivessem levado, ela ainda tava aqui com a gente.Um ano já havia passado quando ela chegou radiante em casa com uma folha de papel nas mãos. Disse que a professora tinha pedido para cada um desenhar a sua família. No desenho, além dela, com seu vestido cor-de-rosa predileto, via-se a mãe, a avó e a bisavó. As quatro sorridentes e de mãos eternamente dadas.

 
Extraído de meu livro "As coisas que chamamos de nossas", conto dedicado à memória de Isabela de Jesus (23/06/1998 - 25/06/2008).

 

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

COMER, COMER, COMER



Escrevo num hotel onde há essa loucura gastronômica chamada de buffet. Impressiono-me com que volúpia hóspedes montam seus pratos, quase sempre ornamentais, olímpicos e homéricos.  Comem como se toda refeição fosse a última. Não dá para atribuir essa insaciabilidade à nossa memória genética e seus registros de um passado de penúrias alimentares. A intensidade é uma marca humana. Nossa consciência da morte é  sutil mas latente. Por isso a angústia que ela causa nos move a buscar tudo ao mesmo tempo. Aproveitar a vida seria a justificativa. Mas que vida mais vazia é essa que necessita ser preenchida a todo instante? Volto à morte (não há como falar da vida sem falar da morte). Se morte representa  ausência, vazio, silêncio, então vida seria presença, plenitude e barulho. Sim e não. A contradição da vida é quanto mais vivemos mais próximos da morte ficamos. Comer em excesso pode dar até uma sensação breve de preenchimento, como toda ilusão, mas acaba sendo apenas  mais um modo de abreviar a própria vida. 



terça-feira, 13 de dezembro de 2011

A MINHA CARTINHA

Querido Papai Noel, é a primeira vez que lhe escrevo. Nunca fui um pedidor, nem mesmo quando ainda acreditava em Deus. Então não sei muito bem o que dizer e nem como. Pedir sempre me pareceu um gesto egoísta. Mas não escrevo esta para criticar quem pede. Pedir faz bem para as emoções, ao menos é o que dizem. Se fosse pedir algo, pediria coisas impossíveis ou improváveis. Que a vida da gente fosse sempre saudável, sem doenças, vírus e bactérias, que chegássemos aos oitenta, noventa anos sem sustos ou sofrimentos físicos. Também gostaria de voltar a me relacionar com meu pai. Nada além do banal, do normal. Mas conflitos também são banais e normais. É estranho ter um pai que opta por não conviver com você. Ainda que ele tenha suas razões e convicções, todos as temos, é sempre um desperdício, um triste efeito colateral da vida. Mas no Natal não se deve ficar triste. Suas cores e sons enchem os corações de alegria e encantamento. Sem dúvida o mundo seria mais triste sem ele. Então, Papai Noel, peço apenas um Natal feliz, com todos que amo bem próximos e saudáveis, inclusive... meu pai.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

VELHINHOS INFRATORES

Fiquei ouvindo rádio no carro no estacionamento do supermercado, já que minha mulher falou que a lista de compras era mesmo pequena. Pois bem, passei a observar o comportamento da turma da terceira idade em relação às suas vagas preferenciais. Em trinta minutos o saldo foi este: uma única credencial utilizada, e o restante, quatro, sem credencial. Houve também um carro com adesivo de cadeirante parado na vaga de deficiente cuja motorista era uma senhorinha lépida e faceira, só que sem deficiência alguma. Isso demonstra que nossa frouxidão com pequenas regras é disseminada em todas as faixas etárias. Costumo ouvir justamente dos mais velhos que os jovens não têm educação, que vivemos o fim dos tempos etc. Essa queixa, recorrente ao longo dos séculos, é tola porque quem a diz se esquece que o mundo em que se vive é herança das gerações passadas. Herda-se inclusive a falta de educação, pois para os tolos a idade só traz mesmo alguma decrepitude, cabelos brancos e o habitual  ressentimento com os mais jovens.   


terça-feira, 29 de novembro de 2011

EU NÃO AMO OS POBRES

Não é uma declaração de ódio social. Para não ser mal compreendido, explico: não amo nem odeio os pobres. Isso porque não me parece razoável  amar pessoas coletivamente e, menos ainda, por sua condição sócio-econômica. Sou capaz de amar ou odiar pessoas, mas individualmente e por razões alheias às suas finanças. Por isso sempre estranho uma declaração de amor aos pobres. Primeiro, porque me parece segregativa, como se pobres pertencessem a uma categoria específica de seres humanos. Note que quem diz amar os pobres está a dizer, em via oblíqua, que não é um deles.  Segundo, porque não se é pobre ou rico, mas se está pobre ou rico. Não há, em regra, segurança nem definitividade numa coisa nem noutra. Elas são sempre circunstanciais. Não é novidade dizer que amar os pobres é provavelmente uma forma de aplacar o sentimento de culpa por um mundo tão desigual e injusto. Mas me pergunto se essa "consciência social" não seria a nova roupagem da velha culpa católica...


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

DOIS DIAS, DOIS TERREMOTOS

Santiago, terça-feira, 4:42 da manhã. Estou no quarto de um hotel. Acordo sobressaltado com um som que parece vir da porta. A fechadura vibra. Em seguida vejo que não é só a fechadura, o armário e a cama também tremem. Cogito, sonolento, a improvável hipótese de um casal fazendo sexo no quarto ao lado. Mas, de repente, tudo se acalma, volta o silêncio e só nesse momento atino para o que realmente acontecera. Curitiba, quarta-feira, 8:20 da manhã. Estou no consultório de um cardiologista. A consulta é de rotina, mas recebo um diagnóstico inesperado cuja gravidade será confirmada ou descartada por outros exames que farei nos próximos dias. Novamente sinto a terra tremer. Dentro de mim, a mesma sensação de impotência, fragilidade e desamparo. Mais tarde me ocorre como o eletrocardiograma, com seus "rabiscos", é parecido com a medição da magnitude dos terremotos. O desta terça foi de 5,6 graus na escala Richter. Não causou danos; só susto aos menos acostumados. Então a vida seguiu normal, tanto lá quanto aqui, mas não sem a lembrança da vulnerabilidade que nos espreita.



quinta-feira, 17 de novembro de 2011

DEUS EXISTE, PAI?

Um dia meu primogênito me fez a pergunta fatal, a mesma que intriga a humanidade desde sempre: Deus existe? Tinha ele cinco, seis anos, se tanto. Parei o que estava fazendo. Olhei-o com gravidade. Respirei fundo e, fazendo uma pausa dramática, respondi: não sei. Como a pergunta me pegou de surpresa, essa foi a resposta que julguei mais honesta naquele momento. Hoje, passado o tempo, continuo com a mesma resposta. Não sei. Note-se que a pergunta foi se Deus existe e não se eu acredito em Deus. Perguntas semelhantes na forma, mas abissalmente diferentes no conteúdo. Afinal, quem pode afirmar com segurança se de fato Deus existe ou não? Mas percebi que o olhar inquisidor e ávido de uma criança esperta pedia resposta mais concreta, mais elucidativa. Então completei: algumas pessoas acreditam em Deus, filho; outras, não. Eu não acredito. Nova pausa. Mas essa é a minha opinião. A sua, um dia você descobrirá sozinho. 


sábado, 12 de novembro de 2011

UMA FOME DE 1976

Nelson Rodrigues dizia sentir por vezes uma fome de 1918, representada pela utopia do pão com ovo, merenda alheia desejada por ele nos tempos de escola. _Hoje vamos para a cidade! Essa frase, dita por minha mãe, era motivo de deleite para mim. Sempre gostei  de andar pelo centro de Curitiba. Eis o roteiro da minha felicidade: ônibus, Praça Rui Barbosa, Rua XV, lojas de tecido, Rua Voluntários da Pátria, acariciar cãezinhos no Aviário São Paulo e pastel de carne com chocomilk na Pastelaria Oriental. Nunca deixei de caminhar pelo centro. Gosto dos prédios, das praças, das ruas e do vai-e-vem de pessoas. Convivo sem susto com suas mazelas e vicissitudes. E quando, para minha satisfação, estou acompanhado de meus filhos, bate aquela fome de pastel de carne com chocomilk. É quando sutilmente volto a ser aquele menino da Vila Hauer que, acompanhado da mãe, sentia-se completamente encantado pela cidade.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O MENINO QUE LAMBIA PRATOS

Em casa, quando criança, finda uma refeição, eu lambia meu prato. Meu irmão, ao contrário, deixava restos. Um  fato tão banal quanto revelador para um lar sem rompantes de afetividade. Pudor e comedimento imperavam quando se tratava de expressar sentimentos. Palavrão só fui ouvir na escola, aos onze anos. Mas volto ao prato. Não é novidade falar da relação íntima entre comida e afetividade. Só hoje percebo o quão meu gesto expressava carência afetiva. Veja, mãe, eu aceito de bom grado esse afeto em forma de comida! Talvez porque eu julgasse que deveria fazer por merecer essa oferta. Já os restos que meu irmão deixava no prato poderiam querer dizer o oposto: Mãe, por mais que você se esforce, seu afeto não me é o bastante. Como relacionamentos afetivos são encontros de neuroses, um salve-se quem puder emocional, não sei qual filho recebia mais atenção. Pobre mãe, tão vilã e tão vítima, tão manipuladora e tão manipulada, quanto seus dois filhos homens, carentes e insaciáveis, dois tipos tipicamente humanos.   


quarta-feira, 2 de novembro de 2011

O RATO E O GAVIÃO

Não, esta não é uma fábula de moral edificante. Ao contrário, trata-se de uma história real e sem moral alguma. Eis o fato: em frente à minha casa, um gavião acabava de dar um voo rasante. Trazia  nas garras um rato enorme, recém catado na sarjeta. Em seguida, predador e presa, estavam no telhado vizinho. O meu ponto de visão era privilegiado, parecia até programa de TV a cabo. A ave deixou o roedor, já morto, a um metro de si. Perscrutava a existência de algum risco. Não havia, porém, nenhuma ameaça. Só pássaros menores, que voavam a certa distância movidos por curiosidade e excitação. Até que, finalmente, deu-se início ao banquete macabro. Como não é educado assistir refeição alheia, tratei de cuidar da vida. Não são poucos os defeitos do ser humano, mas é sua mente criativa e seu coração sensível que dão sentido a esse mundo natural onde, em nome da sobrevivência, impera a matança generalizada.



quinta-feira, 27 de outubro de 2011

PRESO NÃO TRABALHA, MAS COME


Bom dia, polêmica! Companheira constante, uma vez mais venho ter contigo. Eis a questão: se o trabalho dignifica o homem, se de seu suor compramos o pão nosso de cada dia, por que preso não trabalha? Sim, há poucos que trabalham em troca do benefício da diminuição de sua pena. Já a maciça maioria não trabalha porque simplesmente não quer. Talvez por terem mais o que fazer (ou não fazer) dentro dos presídios. Mas todos eles comem e de graça, aliás. Trabalhador, rico ou pobre, tem que trabalhar para comer; presidiário, não. Qual a lógica disso? O trabalho nos presídios não seria a mínima contrapartida para o custo elevado que cada detento representa para todos nós? Sugestão: não trabalha não come. Ah, trabalho forçado é crueldade! Será mesmo? Trabalho ou ócio: o que traz mais benefício ao ser humano? Trabalho é trabalho, forçado ou espontâneo, livre ou vigiado, amado ou odiado, criativo ou robotizado. Trabalhar, ainda que a contragosto, é absolutamente necessário porque sem trabalho começamos a morrer, de um jeito ou de outro.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

MEU VIZINHO MORREU NO JARDIM

Um sol radioso iluminava a manhã. Era sábado.  Preguiçoso, eu  lia um livro confortavelmente instalado em minha casa. Foi quando tudo aconteceu. Primeiro o grito, depois o choro, ambos femininos, vindos de um quintal vizinho, a duas casas da minha.  O socorro veio em seguida, um corre-corre danado. Mais lamentações. Como nada se pode fazer,  acabaram por levá-lo, desoladamente inerte numa maca. Assisti a tudo, impotente. Eis o fato: meu vizinho morreu de um modo rápido, fulminante, cuidando do seu jardim. Passado o choque e a perplexidade, pensei na dignidade e na beleza daquela doce morte domiciliar. Sim, doce, porque a morte lhe veio como a visita de uma velha amiga: sem alarde, sem susto, sem sangue, sem dor, sem hospital, sem tubos, sem cortes, sem tiro, sem terror. Foi triste, é verdade, como toda morte. Mas a tristeza é um sentimento nobre e nela cabe a poesia. No mesmo jardim, mais tarde, novamente pairava o silêncio de uma manhã que, alheia, continuava luminosa e bela. Até hoje não sei o nome do meu vizinho, mas sei que ele morreu em casa, com as mãos sujas de terra, entre suas plantas e suas flores, sem lágrimas e sem adeus. Dorival Caymmi disse que é doce morrer no mar. Naquela manhã vi que também é doce morrer no jardim.



segunda-feira, 17 de outubro de 2011

EU TENHO PRECONCEITO


Menti no título. Eu tenho muitos preconceitos  (assim, no plural). Alguns deles, genéricos e inofensivos. Exemplo: para mim, quem assovia é sempre um chato. Outros, mais sérios e específicos, dos quais não me orgulho, ao contrário, sinto vergonha em tê-los, por isso guardo-os só para mim.A origem do preconceito está na percepção que cada indivíduo tem da realidade e de como ela o afeta, mas também pode ser adquirido por influência do meio. Por isso, sempre haverá preconceito, tamanha a diversidade da aparência e do comportamento humano. Eis aonde queria chegar: o problema não está no preconceito em si,   porque este decorre do direito ao livre pensamento, mas em não reconhecê-lo como tal. Quem não enxerga isso, acredita que existe mesmo algum fundamento científico, natural ou espiritual numa premissa tão inconsistente como a que sustenta todo pensamento preconceituoso. Ou seja, crê que seu preconceito não é preconceito, mas verdade real e absoluta. Assim nasce a discriminação, que é um crime repugnante. Nunca é demais lembrar que a prudente distância entre o que se pensa e o que se faz é um dos pilares da nossa evolução como espécie e, por isso mesmo, deve ser preservada para o bem de todos.

    

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

O BEM E O MAL DO POLITICAMENTE CORRETO

Antes era chique ser politicamente correto. Hoje, como isso se tornou lugar- comum, mais chique ainda é ser contra o politicamente correto. Afinal, atitude é tudo, sempre foi, ainda que apenas retórica. No mundo real, longe da retórica, uma sociedade não costuma tolerar ações sem as respectivas responsabilidades. Por isso no cotidiano é assim:  contra o politicamente correto quando se é "pedra" e a favor, quando se é "janela". A meu ver, em termos práticos, o politicamente correto trouxe o bem da  possibilidade de se dizer não a antigos hábitos e transgressões sociais, antes toleradas ou até incentivadas. Todavia ao mesmo tempo trouxe o mal da sensação de constante policiamento, onde aparentemente nada pode ser dito ou feito sem que alguém grite ofendido. Liberdade, sim, mas permissiva ou vigiada? A sociedade tem se debatido com essa questão sem um consenso e convivido com exageros de parte a parte, o que é normal, porque é da essência humana a inconstância cíclica de seus próprios limites.



sexta-feira, 7 de outubro de 2011

"SÍNDROME DE MADRE TERESA"



Dar amor é difícil, principalmente a quem amamos. "Síndrome de Madre Teresa" poderia ser o nome do impulso que move alguém a dar amor a estranhos diante da dificuldade de dá-lo a quem ama ou, ainda, para preencher a lacuna do medo de se relacionar afetivamente. Mas amar estranhos abnegadamente não é bonito, benéfico e necessário? Sim, é tudo isso, mas na maioria das vezes também é uma fuga emocional. Explico: quem recebe esse amor, em regra pessoas carentes de afeto, saúde, comida, cuidados, atenção, não está em condição de cobrar nada além. O vínculo que une caridoso e carente é efêmero, porque nasce e morre a cada contato. Suas vidas não se misturam nem se confundem. É uma relação tão bela quanto desigual. Já nos relacionamentos afetivos e familiares, os vínculos são sólidos, contínuos, quase eternos e, não raro, confusos e muito desgastantes. A convivência mina diariamente nossas melhores intenções. Como disse, dar amor é difícil, principalmente a quem amamos: exige entrega, reciprocidade e responsabilidade. Por isso, da ótica emocional, distribuir amor assim de modo indistinto em larga escala será sempre uma tarefa menos árdua. Esses breves encontros entre abnegados e necessitados são a metáfora do amor ideal, onde um e outro dão o melhor de si, oferecendo mutuamente as melhores facetas. Há amor, sem dúvida, mas não há convivência nem intimidade, por isso funciona maravilhosamente.  

  

terça-feira, 4 de outubro de 2011

CASAMENTO GAY

Muitos são contra a legalização do casamento gay por julgá-lo ofensivo à família. Penso diferente. A motivação maior de um casamento é justamente o desejo de constituir uma família. Por isso a união de duas pessoas, ainda que do mesmo sexo, é sobretudo um voto de esperança e confiança na instituição da família. Não costumo idealizar nem demonizar pessoas. Para mim, uma família formada a partir de um casal gay não será melhor nem pior do que qualquer outra. Família é família, sempre um misto de paraíso e inferno. O mesmo vale para a criação de filhos. Ninguém é melhor pai ou mãe por conta de sua sexualidade. São departamentos distintos que não se confundem. Prejudicial às crianças é a falta de amor, educação, limites, escola, etc. Homossexualidade não é sinônimo de promiscuidade. Promíscuo é quem tem muitos parceiros, seja hetero ou homossexual. Entendo que um casal gay, por ser incomum, possa despertar curiosidade ou mesmo repulsa, mas é bom lembrar que a sexualidade individual não pertine à coletividade. Livre é a sociedade onde o direito triunfa sobre o preconceito, mesmo que o direito seja de poucos e o preconceito, de muitos.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O RIDÍCULO INDOLOR


Antigamente eram os filhos que desejavam vestir-se com a sobriedade e a elegância dos pais. Hoje são os pais que querem se vestir com a irreverência e a ousadia dos filhos. Não defendo a volta da cartola nem dos espartilhos. Mas está se tornando ridícula essa busca pela aparência juvenil. Já disse aqui outro dia que meus cabelos estão embranquecendo progressivamente. Então, pesquisando sobre o assunto na internet, vi que, primeiro, os homens se afligem com isso mais do nunca, e, segundo, as mulheres dizem gostar de homens grisalhos. Conclui então que o homem pinta o cabelo por gosto próprio e com o objetivo de não parecer velho. Parece óbvio, mas não é. Cabelos pintados, com seu aspecto estranho e artificial, não deixam um homem mais jovem, já que os vincos da face revelam sua idade real. Mas, em contrapartida, despistam providencialmente o foco de sua aparência. Em sua avaliação neurótica, melhor que seus cabelos chamem a atenção pela eventual cafonice do que pelo embranquecimento. Seja pela roupa ou pelo corpo, é mais indolor hoje parecer ridículo do que parecer velho.




quinta-feira, 22 de setembro de 2011

DEIXEM OS GRANDES ESCRITORES EM PAZ

Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Mario Quintana, Vinicius de Moraes, Gabriel García Márquez, José Saramago, dentre outros, nunca tiveram a notoriedade que desfrutam atualmente, o que é bom. Tal façanha, contudo, não se deve às suas obras propriamente, e sim à farta circulação na internet de textos e frases que lhe são falsamente atribuídos, o que é mau. Não apenas porque os escritos são falsos, mas porque nem de longe têm o brilho, o estilo e a profundidade dos autores a eles indevidamente atrelados. Nada contra citações, gosto delas até, desde que respeitada a verdadeira autoria, pois tão condenável quanto plagiar obra alheia (crime, aliás) é atribuí-la indevidamente a alguém. Seria um plágio às avessas? O que dizer então daquela carta de despedida que Gabriel García Márquez teria escrito em Paris pouco antes de morrer de câncer? Carta "homicida", na verdade, porque o escritor de "Cem Anos de Solidão" encontra-se ainda vivo. Aliás, vivo  o bastante para dizer publicamente: "o que pode me matar não é o câncer, mas a vergonha de que alguém acredite que eu escrevi algo tão cafona." Justa sua declaração, sem dúvida, mas débil diante da imensa avalanche virtual que, em sentido contrário, continua a propagar como sua a famigerada missiva. Outros autores, mortos de verdade, ao menos são poupados de tamanho constrangimento. Mas da ofensa à sua memória, não. 

Alguns textos e os autores a quem são indevidamente atribuídos:

Procura-se um amigo - Vinicius de Moraes;
Fechando ciclos - Fernando Pessoa;
Instantes - Jorge Luiz Borges;
Recomeçar e Boleros - Carlos Drummond de Andrade;
Lições de vida - Clarice Lispector;
Promessas matrimoniais - Mario Quintana.

domingo, 18 de setembro de 2011

IT'S NEW YORK

Uma festa para os cinco sentidos: é assim que sempre percebo Nova York em minhas esporádicas mas constantes visitas. Viva, linda, pulsante, tanto antes quanto depois do fatídico Onze de Setembro. Recentemente fui pela primeira vez até o Ground Zero, dias antes da inauguração da bela Plaza Memorial. Nunca tinha tido antes tal curiosidade; sempre achei um programa meio mórbido. Confesso, porém, que não vi nada além de um imenso canteiro de obras. Mentiria se dissesse que senti alguma vibração ou emoção especial. Essa aparente alienação tem uma justificativa:  é que a surrealidade de um acontecimento como aquele transcende minha capacidade de compreensão material, mesmo estando no local de sua ocorrência. Aliás, justamente para isso serve um memorial: dar materialidade ao absurdo vazio da perda. Mas Nova York não é a cidade do luto nem da dor. Não lhe cabe o triste papel de vítima. Porque seus alicerces não estão fincados em arranha-céus, ainda que estes façam parte do seu DNA. O que a sustenta é o sonho comum àqueles que a fizeram como de fato ela é: uma metrópole tão caótica quanto adorável. 



quarta-feira, 14 de setembro de 2011

TEMPO, TEMPO, TEMPO

Outro dia disse para minha mulher: ouça, essa canção é do nosso tempo. Ela, perspicaz, emendou: como assim do nosso tempo? Percebendo aonde ela queria chegar, corrigi: essa canção é do nosso tempo de juventude. É muito comum essa noção equivocada em relação ao tempo, como se ele fosse propriedade ou prerrogativa da juventude. Talvez porque quem é jovem, em tese, tenha todo tempo pela frente. Em outras palavras, os jovens têm o futuro diante de si. Mas o futuro não é outra coisa senão uma expectativa de um tempo que ainda está por vir. Pois é, falo, falo, mas não digo o essencial (como escrevia Nelson Rodrigues). O tempo pertence a quem está vivo, independente da idade. Tenha oito ou oitenta, o seu tempo será sempre hoje. O passado não é mais um tempo, e sim memória, lembrança. Quem vive no passado ou no futuro nega a si próprio a possibilidade do presente. O problema é que às vezes o presente não é lá grande coisa. Então a fuga para outro tempo que não mais existe ou que jamais existiu é algo tentador, talvez até mesmo uma necessidade. O tempo é agora: eis o fato. Mas que coisa mais ambígua, fantástica, relativa, ilusória, fugaz, o tempo é. 


quarta-feira, 7 de setembro de 2011

POR QUE EU?

Não gosto quando me sinto diferente dos outros. Sim, eu sei, somos todos diferentes. Mas, existencialmente falando, somos muito mais iguais que diferentes. Feitos de carne e osso, padecemos das mesmas angústias, independentemente de onde estamos, do que somos ou do que temos. Por isso não gosto de quem, a despeito disso, acha-se diferente, especial, ungido, protegido. Seja por sua origem, qualidades, raça, classe, formação, religião, seita etc. Humildade não é a qualidade de quem se acha menos, mas justamente de quem se sente igual. Ser humilde, então, não é algo simples. O mundo se divide entre os que se acham mais e os que se acham menos. Os primeiros sentindo-se donos de tudo; os segundos, vítimas de tudo. Não bastasse, tais sentimentos estão em todos, em diferente escala, é verdade, mas igualmente ávidos e famintos. É compreensível, por isso, deparar-se com uma situação dramática e perguntar: por que eu? Compreensível mas nada humilde. Talvez outra pergunta simples responda essa aparente insolúvel questão existencial: por que não eu?



quinta-feira, 1 de setembro de 2011

QUEM TEM MEDO DE ENVELHECER?



Eu tenho. Digo enquanto levanto uma mão imaginária. Não sou velho, tenho 43 anos, mas meus cabelos embranquecidos laboram contra meu desejo de parecer mais jovem. Mais que isso, concedem-me a aparência de anos ainda não vividos. E hoje isso é algo absolutamente indesejável. Parecer mais jovem, sempre; parecer mais velho, jamais: eis o mantra da fonte da juventude. Uma ideia antiga, mas que acabou se tornando algo parcialmente atingível com os progressos da medicina e das indústrias estética e cosmética. E por que tanto medo de envelhecer? Primeiro, por causa da morte. Tanto o espelho quanto o olhar alheio são medidores implacáveis da proximidade do próprio fim, um indigesto cartão de apresentação. E segundo, por causa da vaidade, que torna o envelhecimento uma ingrata corrida contra o tempo, cujo resultado pode ser a perda da identidade estética e emocional. Mas, nesse caso, o medo de parecer bizarro ou ridículo é muito menor que o de parecer apenas alguém simplesmente envelhecido.



segunda-feira, 29 de agosto de 2011

TRAIÇÃO: CONTAR OU NÃO

Só confessa aquele que, não suportando o peso do própria culpa, sai em busca da absolvição redentora. Fora isso, não há dilema, pois sem culpa não há a percepção do erro como tal. Dentro do relacionamento amoroso a dinâmica não é diferente. Quem confessa uma traição está buscando o perdão do companheiro traído. O mesmo perdão que não foi possível conceder a si próprio. Assim, quando muito, uma confissão só aliviará o sentimento de culpa, mas não resolverá a questão em si. É antes um ato de covardia, porque quem traiu quer mais é transferir ou dividir a própria culpa justamente com quem foi traído. Diria mais, é sadismo travestido de arrependimento. E a redenção do perdão? Difícil nesse caso, porque o perdão verdadeiro demanda o esquecimento da ofensa e uma traição é sempre inesquecível. Agora, não se pode esquecer que trair e ser traído é sobretudo um sintoma inconsciente e neurótico do próprio relacionamento e, por vezes, seu ponto de equilíbrio.  

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

O MELHOR QUE A POLÍTICA PODE OFERECER

Contardo Calligaris escreveu ontem na Folha de S. Paulo que cresce no Brasil a paixão antipolítica. Em suas palavras, "é a convicção de que o exercício da política é indissociável da corrupção". O resultado disso na sociedade seria a conclusão de que a necessidade mais premente na política é a de pessoas honestas. Vejo isso como parte do processo universal de evolução política, sempre reflexo de seu próprio povo, dividido em três estágios. O primeiro, mais arcaico, com países ainda dominados por regimes ditatoriais ou em processo de levante. Seus povos vivem entre o medo e o desejo de liberdade. O segundo, intermediário, com países que, mesmo democráticos, debatem-se com sua falta de maturidade e responsabilidade. Seus povos vivem entre a descrença e a esperança política. E o terceiro, mais evoluído, com países cujas amadurecidas democracias promovem liberdade e responsabilidade. Seus povos vivem entre a segurança e a indiferença com as coisas da política. Aliás, esse estágio último possibilita ao cidadão preocupar-se apenas com a própria vida. E isso é o melhor que a política pode oferecer.  


quarta-feira, 24 de agosto de 2011

POR QUE AUTOAJUDA NÃO AJUDA

Confesso: já li autoajuda. Em minha defesa, digo que isso se deu há muitos anos. Gosto é gosto, eu sei. Mas desde então peguei aversão ao gênero. A mente humana não é passível de uma sistematização pragmática, logo qualquer comportamento padronizado por regras, que não aquelas necessárias ao convívio social, está fadado ao fracasso. Somos seres individuais e diferentes uns dos outros, ainda que postos em condições gerais semelhantes. Exemplo: filho, para sentir-se amado, tem que receber atenção, carinho e, principalmente, limites, porque só assim crescerá num ambiente seguro. A proposição não está errada, ao contrário, está certíssima. O problema é colocá-la em prática se a prática depende de inúmeras questões emocionais difusas e complexas de todos os envolvidos. Se um filho é alvo de rejeição inconsciente por parte da mãe, tudo vai por água abaixo, mesmo que a cartilha seja seguida, porque há o espaço da comunicação não verbal, imenso aliás. Ou seja, não será com palavras bem escritas que a situação se tornará melhor. Autoajuda não ajuda pela mesma razão de que nem os bons conselhos ajudam. Só conseguimos nos ajudar quando enxergamos nossas limitações por conta própria e não quando externamente apresentados a elas.    

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

PARA ONDE A MODA VAI?


Intriga-me essa androginia anoréxica da moda de hoje. No mundo fashion homens e mulheres têm corpos retos, sem curvas, e se vestem, por vezes, de modo muito similar.  Vi outro dia que as roupas masculinas de uma loja mundialmente conhecida têm os seguintes tamanhos: extra pequeno, pequeno, médio e grande, sendo que o tamanho grande em questão não se destina aos gordos e sim aos altos. A novidade para mim foi o tamanho extra pequeno. Ou seja, o baby look está agora disponível também para homens. Não discuto a questão estética porque esta decorre de gosto e tem natureza cíclica, mutável e inconstante, porém preocupa-me a angústia que esse padrão nefasto e excludente causa à sociedade, em especial, aos adolescentes, cuja intensidade também pode ser medida pelos crescentes índices de obesidade. Tornar homens e mulheres fisicamente iguais, será mesmo esse o objetivo da moda? Já ouvi dizer que essa androginia e anorexia  vêm da visão estética que os estilistas, homossexuais em sua maioria, têm do corpo humano, sobretudo o feminino. Pode até ser, mas a aparente obediência servil aos caprichos da moda pode ter um significado importante no inconsciente de todos. 





sexta-feira, 5 de agosto de 2011

PADRÃO BRASILEIRO



Sempre ouvi dizer que o maior problema do Brasil é o da falta de educação. Porém penso que a falta de educação que mais nos maltrata seja aquela básica, em seu sentido estrito, cuja ausência causa a frouxidão da conduta moral. Por isso paira sobre a nação uma nefasta relativização da ética, que vai muito além da educação acadêmica. Falta-nos  uma consciência coletiva estruturada para inibir a transgressão de regras de caráter geral, principalmente quando estas colidem com o interesse individual. E o fato de se ter ou não curso superior nada influencia nesse padrão, porque presente em todas as classes sociais, independentemente do nível de escolaridade. O fato é que essa conduta relativista cria um anestésico para a prática de  toda corrupção, inclusive a política. Engana-se quem vê corrupção apenas na vida pública. Há corrupção, e muita, na vida privada. A sonegação de impostos e o desrespeito às normas de trânsito são exemplos clássicos, graves e contundentes. Porém, por conta dessa relativização, todos têm sempre uma justificativa bem articulada, mas individualista, para suas "pequenas falhas". Infelizmente não há perspectiva desse padrão ser alterado.  Não enquanto nos lares nossas crianças seguirem aprendendo, através do mau exemplo, que suas obrigações e responsabilidades com a sociedade são meramente relativas.

domingo, 31 de julho de 2011

FORMANDOS INFANTIS

Há muito que não ia a uma cerimônia de colação de grau universitário. Eis que sexta-feira fui. Como se tratava do curso de direito, inevitável foi a lembrança da minha, ocorrida há vinte anos no mesmo local. Inevitável também foi a comparação. A solenidade deixou de ser solene; é agora um show, organizado, cheio de luz e cores. No púlpito, os formandos faziam as homenagens em duplas, lembrando mais a entrega de prêmios musicais do que uma escola de direito, onde a oratória deve, ou deveria, ser um dos pontos altos. Até mesmo o discurso do orador da turma foi feito em dupla. Minha esperança era que o discurso do paraninfo colocasse tudo em outra perspectiva. Mas não, embora crítico, culto e reflexivo, faltava-lhe a retórica e o carisma. Para piorar, durante sua fala, uma câmera passeou entre os graduandos que, incontidos, interagiam com a plateia através do telão, fazendo gestos engraçadinhos. O público,  em resposta, soltava risos sonoros, ignorando o professor homenageado. Eis uma das facetas dessa geração:  parecer descolado diante de uma câmera sem medo de parecer apenas mal educado. A exibição de fotos dos formandos quando crianças, na homenagem aos pais, remeteu-me a uma formatura de jardim de infância, onde pais são igualmente presenteados com as gracinhas de seus pimpolhos. Uma coisa me pareceu certa: as formaturas de outrora eram menos apoteóticas, mas eram mais adultas. A certa altura, o inaudito paraninfo falou que aqueles formandos representam o progresso da humanidade. Talvez. Mas foi a única hora que tive vontade de rir.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

CRER OU NÃO CRER: EIS A QUESTÃO

A frase do título, inspirada na proposição de Shakespeare, induz pensar que crer ou não em Deus seria fruto de uma escolha consciente em face da conjuntura do universo. Nada mais equivocado. Não é opção; é consequência. Por trás da racionalidade humana está o desamparo, incólume e intangível, motivado pela sina de se ter consciência num mundo caótico. A existência de Deus, obviamente, seria a antítese para esse mesmo caos. Mas esse desamparo não se limita à questão existencial universal, isso porque intimamente ligado às questões existenciais de caráter individual. Insere-se aí o   resultado das relações primárias da infância, quando as necessidades são satisfeitas ou frustradas visceralmente. Por essa razão, tais sensações permanecem por toda vida. Assim, a crença ou a descrença será, em parte, resultado da imitação, negação, frustração, aprovação, carência ou outro sentimento assim permeado. Mas só em parte,  porque somos seres individuais e reagimos emocionalmente também de modo individual em face da vida, inclusive com a capacidade de seguir em frente. Assim, crer ou não crer em Deus não depende de uma conversão, e sim de uma combinação específica de emoções, independente de qualquer convencimento racional. Mas não nos enganemos, com ou sem fé, em maior ou menor proporção, sempre haverá o desamparo.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

TOLERÂNCIA COM O MAL

Outro dia escrevi nesse grande espelho virtual que é o facebook o seguinte: só toleramos o que inconscientemente aprovamos. Aprofundo meu humilde aforismo, começando com um exemplo: nossa tolerância com a bandalheira da vida pública brasileira. Só mesmo uma aprovação inconsciente em massa justificaria essa inesgotável tolerância. Mas não quero falar do nosso povo, amante inconfesso da corrupção, ainda que pequena, daquela que não faz mal a ninguém... Por que toleramos o que nos prejudica? Auto-sabotagem. Sim, evidentemente, mas não apenas isso. Acalentamos, todos, desejos inconfessáveis e, por essa razão, inconscientes. O filho que maltrata a mãe encontra nela a aprovação de sua conduta infame. Seja porque ela mesma se julga intimamente merecedora ou, ainda, porque ele ocupa o papel neurótico e conveniente de vilão. Dinâmica semelhante se dá nas relações familiares com alcoólicos, drogados, revoltados etc. É a velha dicotomia do bem contra o mal, que se presta a uma superficial e falsa auto-definição. Se alguém me causa o mal é porque, por exclusão, sou do bem. Seria demais para aquela pobre e vitimizada mãe assumir que alguma vez tenha desejado agredir seus próprios pais ou mesmo transgredir normas de conduta moral e social. Seu desejo reprimido é, portanto, realizado pelo filho, daí sua tolerância. Ou seja, até no clássico padecimento materno está presente o mal. Definir o bem e o mal: eis uma tarefa difícil, absolutamente necessária, mas fadada sempre ao fracasso.




segunda-feira, 18 de julho de 2011

SEJA FELIZ, MEU FILHO!

A mensagem passada de pais para filhos muda com o tempo. A geração de meus pais, por exemplo, recebeu a seguinte: Trabalhem! Não há futuro para quem não trabalha. Diziam isso, talvez, por acharem que não trabalharam o suficiente. A minha geração recebeu outra: Estudem! Não há futuro sem um diploma universitário. Isso porque aquela geração sentia que poderia ter ido mais longe na vida se tivesse graduação superior. Como se vê, é a frustração de uma geração que irá nortear o tipo de mensagem que a próxima receberá. E qual a mensagem que fica para a nova geração? Antes, porém, é preciso dizer que os pais atuais sentem-se frustrados porque a vida tecnológica não trouxe a felicidade prometida. Assim, perplexos e sem rumo, tentam desesperadamente  prover seus filhos de qualquer necessidade física ou emocional, numa débil tentativa de protegê-los dessa vida real e sem sentido que tanto os atormenta. Nesse contexto, conclui-se que a mensagem de hoje é bela porém absolutamente vazia: Seja feliz, meu filho! Faça só o que te dá prazer. Uma mensagem tão cínica e cruel como essa só poderia resultar numa geração ainda mais perdida, mais sem rumo, com jovens infantilizados que passam a maior parte do tempo anestesiados na frente de seus eletrônicos de ponta, mas que sabem pouco, muito pouco, da vida como ela é.






quarta-feira, 13 de julho de 2011

WOODY ALLEN


Enquanto assistia ontem pela segunda vez ao encantador "Meia-noite em Paris" constatei o óbvio: o personagem principal da trama, Gil Pender, não é outro senão o próprio Woody Allen. Estão lá os trejeitos, o ritmo da fala, o olhar, o figurino e, sobretudo, os desejos e as angústias do diretor. O filme, um divã cinematográfico, é a história de um roteirista de Hollywood que tem sucesso profissional, mas se sente frustrado por não ser um romancista em Paris. Talvez Woody se sentisse mais realizado, e assim mais valorizado por si próprio, sendo um grande escritor do que um grande roteirista/diretor, como se o cinema fosse uma arte menor do que a literatura. Mais ainda: sua insatisfação não se limita à escolha profissional e ao local onde mora, mas também ao tempo em que vive, na eterna romantização de um passado glorioso, as "eras de ouro" que nunca existem no tempo presente. Mas eis que, depois de muito caminhar perdido fisica e emocionalmente pela noite de Paris, Gil Pender tem um insight salvador de que a vida, de uma forma ou de outra, é sempre insatisfatória e que as escolhas que fazemos são sempre válidas porque são reais. Na verdade, ao olhar para trás, questionamos nossas decisões por referências diversas daquelas percebidas no momento  da decisão. Porém a hora crucial não é o passado mas o presente, quando temos que decidir. Por essa razão  norteamo-nos mais por referências reais do que ilusórias. Agimos assim por conta do nosso instinto de auto-preservação. Depois disso, liberto de seus fantasmas, tal qual Gil Pender, Woody Allen pode agora caminhar pela noite chuvosa de Paris, muito mais leve por ser simplesmente quem de fato ele é.






quarta-feira, 29 de junho de 2011

CIDADE LUZ

Museu, quanto museu
Ponte, estátua, chafariz
Escultura, desenho de croquis
Vidas expostas, intensas
Van Gogh, Monet, Rodin
Tudo é arte, tudo é movimento
Ruas acolhedoras
Cafés na calçada
Andar, conversar
Comer, viver
Beber, sorrir
E mesmo morrer
Verbos infitinivos
Nela definitivos
Genitora dos estilos
Do livre pensamento
Vila dos amantes
Museu, quanto museu
Ponte, estátua, chafariz
Escultura, desenho de croquis
Picasso, Da Vinci, Manet
Passado, presente, futuro
O tempo não passa
Apenas permanece                            
Calmo, intocado
Rimando, misturando
Sensações diferentes
Antagônicas, harmônicas
Sensoriais, banais
Enchendo, preenchendo
Poros, olhos, coração
Com sua doce visão
Com sua doce ilusão
Ces versets sont pour vous
Mon petit Paris.


sábado, 25 de junho de 2011

APARIÇÕES ESPIRITUAIS

Muitas são as histórias de aparições espirituais. Em regra a visão é a de um falecido parente.  Seriam fenômenos sobrenaturais. Mas o que é um fenômeno sobrenatural? Algo que ultrapassa o conceito de natural, segundo o dicionário. Mas sobrenatural também pode ser apenas o que ainda não é natural. Muito do que era sobrenatural passou a ser natural quando se percebeu como e por que ocorre. Uma terrível tempestade, por exemplo, antes era tida como um sinal de fúria dos deuses. A evolução humana, porém, está baseada na desconfiança, na curiosidade e, principalmente, na busca do controle do ambiente. E como todo o conhecimento ainda não nos é possível, criamos realidades emocionais para as lacunas da razão. Em outras palavras,  quando o cérebro não consegue explicar, a emoção se encarrega disso. Volto às visões espirituais. Ocorrem-me duas hipóteses. Uma:  seriam de natureza externa, portanto fenômenos sobrenaturais à espera de futura compreensão científica. Outra:  seriam de natureza interna, uma criativa forma que a psique encontra para, utilizando a credibilidade de quem já se foi, revelar conteúdos da mais profunda inconsciência. Qual proposição estaria correta? Talvez nenhuma delas. Quem sabe esta outra ainda resolva melhor a questão: no creo en las brujas, pero que las hay, las hay...








  

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O SILÊNCIO DA MINORIA







Estávamos no quarto quando ele entrou. Não fazia muito tempo que minha mulher tinha voltado do centro cirúrgico. Ele, no caso, era o pastor, o capelão da clínica. Trazia no semblante a típica e aparente confiança de que tudo no universo está na mais perfeita e absoluta ordem. Foi logo dizendo gracejos amenos para facilitar a aproximação, que não tardou. Ao lado da cama, buscando uma das mãos de minha mulher, disse em tom grave e imperativo: "Vamos agradecer a Deus porque foi graças a Ele que tudo correu bem". Nosso constrangimento, que já era grande, chegou então a níveis críticos. Resistimos silentes, temendo que ele iniciasse uma oração ou algo parecido. Ele, porém, sem desistir, nos ofereceu folhetos com palavras de fé, recomendando a leitura.  Mais silêncio. Foi aí que comentei sobre a demora do almoço. Finalmente o visitante nos deixou. Pergunto: por que a maioria acha que todos têm uma crença religiosa? Respondo: porque é assim que as maiorias agem, simples. Por isso as minorias sabem que o menos danoso, às vezes, é engolir o constrangimento e simplesmente calar.




sexta-feira, 10 de junho de 2011

PRECONCEITO



Se o preconceito é um conceito prévio, seria correto dizer que ele nasce de uma experiência de vida. Seria mas não é. O preconceito é uma perspectiva torta,  baseada numa presunção simplista de que é possível julgar pessoas pela superfície e não por seu conteúdo. O preconceito é um sintoma de desajuste emocional diante da vida que pode ser reforçado por imitação ou pelo desejo de aceitação. Não adianta negar: todos temos preconceito, ainda que por objetos e intensidades distintas. E por ser algo que vai muito além do raciocínio consciente, campanhas governamentais de conscientização não alcançam seu objetivo, tampouco a criação de cotas sociais trazem bons frutos, quer seja por partirem da premissa preconceituosa de tratar iguais de modo desigual, quer seja pelo desserviço à auto-estima daqueles a quem se quer beneficiar. Não cabe ao Estado a pretensão de ensinar a viver; a sociedade já tem mecanismos para coibir e punir a violência contra qualquer pessoa, ainda que por vezes ineficientes. Nota: disse qualquer pessoa porque esta condição se sobrepõe a qualquer outra qualificação. A questão não é viver sem preconceito, isso não é possível, mas de viver em sociedade apesar do preconceito. 

segunda-feira, 30 de maio de 2011

RIO DE JANEIRO



O que me impressiona na cidade do Rio de Janeiro não é seu apelo turístico, um tanto superestimado a meu ver. Tampouco sua violência, igualmente superestimada, já que, além de setorizada, tem nome e sobrenome. Também não é a arquitetura dos prédios de Copacabana, colados demais para meu gosto.  Não, não é o centro da cidade, muito mais decadente do que charmoso. O que me impressiona na cidade do Rio de Janeiro é que lá as pessoas gostam de viver a vida da cidade. Explico: no Rio, ao contrário de outras metrópoles brasileiras, o outro não representa uma ameaça em potencial, mas alguém pronto para se trocar palavras amistosas. Nas chamadas horas livres, as ruas cariocas estão repletas de pessoas que, transitando livremente, aproveitam o que a cidade tem de melhor, que são as próprias pessoas, vivas, sonoras, alegres. Restaurantes e bares se estendem sem medo até às calçadas. Grata surpresa: lá ainda existe cinema com portas voltadas para a rua. Que bela e nostálgica visão. É justamente essa vida espontânea, humana, que os shoppings tentam, sem sucesso, recriar. Amo minha cidade, Curitiba, mas confesso que neste último fim de semana,  distraído, imaginei-me desfrutando diariamente de toda a vida alegre que circula solta pelas ruas do Rio de Janeiro.

domingo, 22 de maio de 2011

Um mundo sem Deus


Dizem que sem Deus o mundo seria caótico, sem regras e sem sentido.  Mas neste mundo com Deus (e suas inúmeras religiões) há mais discórdia que entendimento, mais ódio que amor, mais preconceito que aceitação, mais julgamento que perdão. Em contrapartida, a ciência, ora desdenhada ora perseguida pela fé, tenta tornar possível e compreensível a vida sem Deus. Mas essa tarefa é inglória quer seja por conta do nosso infinito desamparo, quer seja por não haver ferramenta de domínio mais eficiente do que a chancela divina. Deus é, portanto, não apenas a esperança de triunfo sobre a morte, mas principalmente a personificação do desejo que habita o coração humano de a tudo  e a todos controlar, até mesmo quando se pratica o bem. Simples assim: se não posso controlar tudo, meu Deus pode. Então ouso sonhar com um mundo sem Deus, sem a triste ambição do pensamento preso a uma só verdadeSonho com uma vida natural que se baste e se encerre em si mesma. Sonho com uma vida impossivelmente humana.




domingo, 15 de maio de 2011

MINHA ESCRITA


Não escrevo para os outros. São os meus fantasmas que espreito, flerto, tento espantar. Escrevo sobretudo para tentar me localizar no tempo, no espaço, nas emoções. Nessa empreitada meu cérebro é um ouvinte atento do que o coração dita. Só assim um texto tem textura, cor e profundidade. Parêntesis: raramente faço citações. Não acho que a transcrição de uma bela frase vá melhorar meu conteúdo nem dar-me prestígio. Ao contrário, se necessito do socorro alheio é porque justamente me faltam conteúdo e prestígio. Voltando: mas mesmo o coração precisa de regras. Então busco a escrita cujo conteúdo traga misto de prazer e desconforto e, em sua forma, seja breve e inteligível.  Disse antes que não escrevo para os outros. Não é bem assim. Sou, sim, um mendigo com a mão estendida esperando um comentário, um elogio, um aplauso. Mas este sou eu; não minha escrita.




sexta-feira, 6 de maio de 2011

Como é bom ter uma paixão



Fazia frio naquela noite. O Coritiba enfrentava o Botafogo/RJ pela Copa do Brasil e perdia de 1 a 0. Nossos bravos jogadores sequer conseguiam arquitetar um mísero ataque que ameaçasse a meta adversária. Na arquibancada milhares de torcedores se dividiam entre a aflição e a resignação. A certa altura, meu filho disse sem tirar os olhos do jogo: Pai, seria tão bom se a gente torcesse para um time que fizesse gol. Eu, abraçando-o, pedi desculpas por metê-lo naquela "fria". Se ele lá estava era naturalmente por minha causa. Conformado, disse-me que tudo estava bem. O tempo passou e ontem, no mesmo estádio, vimos o Coxa massacrar o Palmeiras, pela mesma Copa do Brasil, com o estupendo placar de 6 a 0. Um espetáculo futebolístico. Talvez o melhor jogo da história centenária do nosso time. Como é bom ter uma paixão, que nos faça rir, que nos faça chorar ou até  as duas coisas ao mesmo tempo. Mas, sobretudo, que nos faça vivos.  Assim é o futebol. Assim é a vida.

terça-feira, 3 de maio de 2011

A expressão máxima da inveja

Há muito que Osama bin Laden havia se transformado num mero fantasma, um espectro a esgueirar-se por entre sombras e escombros, e sua morte, ainda que emblemática, infelizmente, não altera o curso do fanatismo no mundo, pois este tem vida própria. 
Engana-se quem pensa que inveja é apenas querer o que outro tem, é mais, é não querer que o outro tenha. Por essa razão penso no terrorismo como a expressão máxima da inveja, resultado de um profundo sentimento de inadequação; e no fanatismo, não como fonte dessa inveja, e sim sua forma.  No fundo, todos, independente de origem, raça ou credo, queriam ter a vida que se vê no cinema americano: ruas cheias de árvores e lindas casas sem muros. Apesar de ilusória, essa imagem de vida ideal, repleta de sorrisos e liberdade, causa reações variadas e impactantes. Não, a culpa desse sentimento de inadequação não é do cinema americano e nem dos próprios americanos. A culpa é da própria condição humana que, aliada à vida miserável de muitos povos, torna-se terreno fértil para a proliferação de líderes execráveis, da ignorância, do ódio, do fanatismo e, principalmente, da inveja.  




quinta-feira, 28 de abril de 2011

Meus amigos do Café
















Desde há muito que meu interesse por pessoas independe da idade. Um tolo não deixará de ser tolo só porque o tempo passou. Pessoas são interessantes ou não. Não me convence também o argumento de que com a velhice vem a sabedoria, quer seja porque a experiência, como já li em algum lugar, é uma luz que ilumina para trás, quer seja porque, como disse, pode viver-se muito e aprender-se pouco. Nas manhãs de sábado tenho um compromisso: encontrar-me com meus amigos Oscar, Milton, Margarita e Juca no Exprèx Caffè da Santos Andrade. É assim há alguns anos e com muito gosto de minha parte. Lá conversamos sobre tudo, filosofia, política, religião, história, costumes etc, sem regras ou preconceito, só boa conversa. O Oscar é um intelectual na acepção da palavra, leitor ávido da história, e tão sério quanto gentil. O Milton é uma "figura", calmo, silencioso, sempre com um sorriso que une afabilidade com ironia. A Margarita é escritora e uma bem humorada contadora de casos escabrosos, sempre aberta para a vida. E, finalmente, o Juca, o Juca é um tipo memorável, culto, humor ácido, romântico, um grandalhão de coração absolutamente doce. Detalhe: todos são velhos. Dois na casa dos setenta e dois, na dos oitenta. E o que tem isso demais? Nada. Gosto deles porque são pessoas interessantes e, mais ainda, porque são meus amigos.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Casamento na realeza

Essa semana se realizará mais um casamento na família real inglesa e o mundo já está excitado, como se todos fossem convidados para a cerimônia que, como sempre, será de pompa e circunstância. Nada contra. Desde a Roma antiga se sabe que o povo não precisa só de pão, mas principalmente, e cada vez mais, de circo. Se a tradicional monarquia britânica não tem mais o poder político de outrora, tem ela, ainda, outro, tão grande quanto, que é o de personificar  contos de fadas, essas histórias emblemáticas que alimentam há séculos o gosto humano por beleza e encantamento. Mas todo conto que se preze tem a dicotomia entre o bem e o mal. E este, que se inicia agora, não será diferente, pois a mesma população que irá consumir extasiada toda a felicidade e beleza desse momento de união, logo estará ávida para consumir toda a eventual tristeza e intriga que puderem ter conhecimento deste mesmo casal aparentemente perfeito. Assim o casamento real poderá cumprir seu ciclo no imaginário de todos. Primeiro o encantamento, por conta da super exposição de sua vida rica e cheia de glamour. Depois a certeza de que isso é ilusão, porque todo casal, no fim das contas, é sempre um casal, repleto de sentimentos antagônicos, seja ele feito de nobres ou plebeus.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

O Filho do Homem



Quando morreste dependurado
Não poderias prever ou ter imaginado
O real tamanho do teu legado.
Clamaste por teu pai, já desesperado
Por que Ele tinha te abandonado
Tudo ruíra, tudo estava consumado
Teu destino, homem sem pecado
Com teu sangue fora selado.
Cumpriste o que lhe fora ordenado
Mas quem te ordenou? homem coitado
Quem te disse para ser flagelado?
Que eras um cordeiro a ser sacrificado?
Foi um pai ou padrasto malvado?
Foi um anjo ou o próprio diabo?
Quem te disse para nos salvar do pecado?
Teria sido Deus, teu pai idolatrado?
Ou apenas teu coração penalizado.
Viveste num tempo perturbado
Teu povo queria ser libertado
Concluíste que eras o messias tão esperado
Quem te disse isso? homem bem aventurado.
Tu, de fato, eras muito qualificado
Entendias o fraco e o marginalizado
Talvez foste o melhor ser gerado
Querias nos ver todos irmanados
Não aqui neste planeta conturbado
Mas num paraíso glorificado.
Viveste sozinho, não foste casado
Não tiveste filho nem afilhado
Não foste patrão nem empregado
Sequer provaste o gosto do pecado
Não te enquadraste, homem exilado.
Querias ver tudo mudado
Conforme haviam profetizado
Mas não percebeste, homem santificado
Que o homem não quer ser ajudado
Quer, sim, ver seus santos adorados
Para, depois, vê-los apedrejados.
Foste por um dos teus atraiçoado
Depois, julgado e condenado
Riram de ti enquanto eras assassinado
E sequer ficaste magoado
Tinhas um coração todo dourado
Mas terminaste crucificado
Morreste sozinho, homem fracassado.
Apesar do mundo continuar inalterado
Com o tempo foste revitalizado
Escreveram sobre o teu passado
Sobre cada parábola, cada milagre realizado
Disseram que havias ressuscitado
Passaste a ser o filho de Deus! homem mistificado.
O Império Romano, que tinha te ironizado
Tornava o teu dogma oficializado.
Mas tu exististe assim como contado?
Ou foste intencionalmente criado?
Um lindo conto para ser acreditado
Aquele que venceu a morte! homem idealizado.
Pergunto: até quando serás esperado?
Para o teu retorno tão aguardado
O dia que fundarás o teu reinado.
Pobres homens, pobres coitados
Esperam que um deus, um ser alado
Imponha-lhes a paz e o aprendizado
Que até hoje não puderam ver realizados
Até mesmo tu, homem esperado
Não poderás ver esse destino ser alterado
Porque esse reino dos céus, tão sonhado
Seria um arremedo, um reino falsificado
Porque não seria conquistado
Cairia dos céus, desabado
Como um decreto, por Deus firmado
Sobre todos os homens, humilhados.
Ah! Jesus de Nazaré, homem amado
Quiseste nos ajudar, foste bem intencionado
Mas tornaste o homem ainda mais resignado
Um consumidor ávido para ser explorado
Por teu nome tão comercializado.
Talvez fosse melhor que vivesses isolado
Sonhando com o que sempre tinhas sonhado
Sem nada nos ter ensinado.
Se apenas o discurso foi lapidado
Que tu, ao menos, homem iluminado
Tivesse um pouco da vida aproveitado
E talvez percebesse, homem endeusado
Que o bem e o mal, convivem lado a lado
Dentro deste nosso coração mal acabado
Porque a vida é desse jeito desajeitado.
E se a morte é um fato consumado
A vida é um tempo a ser experimentado
Neste mundo que é duro mas encantado
Onde nada se cria ou se perde: tudo é transformado.
É pena que não percebeste isso a tempo
Pobre homem enganado.

(Páscoa de 1997)